O coelhinho da páscoa é tão irreal quanto a fada da confiança

Rodrigo de Abreu Pinto
3 min readApr 12, 2020

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À primeira vista, parece estranho. Mas não deve surpreender que até os economistas liberais estejam defendendo os gastos públicos — ao menos os mais consequentes, como é o caso da dupla Marcos Lisboa e Marcos Mendes. Ao contrário de Paulo Guedes que assistiu o estopim da crise enquanto insistia que privatizações e reformas eram necessárias antes de qualquer flexibilização.

De todo modo, vale a pena prestar atenção no duplo caminho que Lisboa e Mendes percorrem. Em primeiro lugar, admitem apenas gastos públicos emergenciais, circunscritos aos remédios da pandemia, sem considerar o montante de investimentos na saída da crise. Em segundo lugar, já preconizam o ajuste fiscal por vir, dessa vez ainda mais duro.

Guerreiro alagoano (1943) de Marcel Gautherot.

No último artigo que escreveram juntos, a dupla concluiu dizendo que “não haverá mágica para pagar esse passivo público”. Sem mágica, afinal, quer dizer que a situação pode ser compreendida da maneira mais intuitiva. Se uma família gasta além da conta no mês, terá que economizar no seguinte. De modo parecido, uma vez que aumentamos a dívida pública para sanar a pandemia, tão logo precisaremos assumir as inevitáveis consequências.

A conta é simples. Os números falam por si. Foi esse raciocínio moralista (“boa austeridade” e “má despesa”) transvestido de ciência que guiou a imprensa brasileira em sua obsessão pelo equilíbrio fiscal nos últimos anos.

Diferente do lar, no entanto, ao Estado é possível aumentar a arrecadação via reformar tributária ou crescimento econômico (diminuição da relação dívida/PIB pelo aumento do denominador); fixar a taxa de juros sobre a própria dívida; e até imprimir dinheiro, como tem sugerido liberais menos ortodoxos como André Lara Resende, Eduardo Gianetti e Henrique Meireles.

Em outras palavras: o Estado pode acionar instrumentos anti-cíclicos e assim enfrentar os choques com mais facilidade que uma família, cabendo-lhe impulsionar o crescimento econômico ao mesmo tempo que preserva a sanidade das contas públicas.

O passe de mágica dos que defendem o ajuste fiscal, a curto prazo e qualquer custo, é dizer que o crescimento não será castigado por isso, mas que será estimulado justamente porque o governo saiu de cena.

Em síntese, a lógica é a seguinte: à medida que o Estado corta os gastos, assegura que a trajetória da dívida não sairá do controle, tornando improvável o aumento de impostos ou qualquer outra saída inflacionária no futuro, o que teria o condão de restaurar a confiança dos investidores privados. Bastaria, portanto, contrair o Estado para que, uma vez restaurada a confiança dos empresários, a economia finalmente ganhasse tração.

Aí está a fada da confiança — personagem criada pelo economista ganhador do Nobel Paul Krugman — tão irreal quanto o coelhinho da páscoa, como provam os últimos dados da economia brasileira em que a queda dos investimentos públicos foi a contraparte da desaceleração dos privados em 2019, contrariando o discurso ufanista do ministro Paulo Guedes.

Quando a pandemia passar, é provável que a posição de Lisboa e Mendes seja equiparável a do governo Bolsonaro. Pois o presidente esconderá a chave do cofre ao mesmo tempo que coloca a culpa da crise nos governadores, enquanto a dupla de economistas o farão pela convicção na penitência necessária após a gastança, além da fé cega de que a austeridade é também expansionista.

Se é certo que atualmente todos defendem o aumento dos gastos públicos, ainda mais certo é que a esquerda deve se preparar para despontar como verdadeira alternativa — em termos da continuidade dos investimentos e auxílios às classes populares — no momento em que boa parte dos economistas renovarem suas preces na agenda do ajuste fiscal.

A primeira batalha será pela conservação, ainda que em patamar reduzido, da renda básica emergencial mesmo após a crise. Somente assim, será possível garantir um patamar mínimo de consumo — sem endividamento das famílias — capaz de dinamizar o mercado interno a ponto de torná-lo o motor da retomada.

Numa estratégia que direciona os estímulos para a base da pirâmide, os setores mais rapidamente estimulados — sobretudo serviços — são os mesmos que requerem mão de obra intensiva mas de baixa qualificação, o que permite a integração dos trabalhadores que estão há muito desempregados.

Em lugar da fada da confiança, o que temos a oferecer é um programa em que a melhora na distribuição de renda é o veiculo para a reativação do mercado de trabalho.

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Rodrigo de Abreu Pinto
Rodrigo de Abreu Pinto

Written by Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.

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