O golpismo e a Esquerda
Para não dissipar a energia anti-sistêmica que o elegera, Bolsonaro iniciou o governo rompendo com o famigerado presidencialismo de coalizão — não assistimos, por exemplo, a distribuição de cargos e ministérios entre partidos da base aliada nos primeiros dias de governo. Se há algo de positivo em contestar a “velha política”, o problema é que o presidente não tinha nada para pôr em seu lugar. O bolsonarismo, é bom que se diga, não se traduz em nenhum projeto político com o mínimo de substância para guiar e inspirar os deputados.
Sem toma lá dá cá ou projeto que o valha, a relação entre Executivo e Congresso tenderia a paralisia decisória. Isso só não aconteceu porque o Planalto adotou, sem publicidade, uma postura que endossou os parlamentares: por mais que não participe ativamente do jogo político, Bolsonaro foi o presidente que mais liberou emendas parlamentares (R$ 5,7 bilhões em 2019). Só na reforma da Previdência foram R$ 3,04 bilhões, além de não ter vetado projetos que fortaleceram o Congresso como as emendas impositivas das bancadas e o fundo eleitoral bilionário.
É claro que, por outro lado, Bolsonaro manteve a rotina de críticas aos parlamentares, sobretudo quando esses derrubavam os vetos ou deixavam caducar as MPs histriônicas do presidente. O bolsonarismo, afinal, só sobrevive e consolida seu eleitorado ao gerar essa tensão permanente contra os “inimigos”. Através de trancos e barrancos, Bolsonaro conservou o apoio de 30% do eleitorado que, bem ou mal, parecem acreditar que a culpa do insucesso do governo está nos outros.
De onde surgiu o golpismo mais recente
2020 começou com Bolsonaro galvanizado pelo inédito aumento de popularidade na esteira da melhora dos níveis econômicos no 2º semestre. Foi então que Paulo Guedes ganhou proeminência no governo e emplacou Rogério Marinho, queridinho do Centrão e importante articulador das reformas, como ministro do Desenvolvimento Regional.
A maré, no entanto, virou depressa, a começar pelos comentários desastrosos do ministro da Economia Guedes sobre os funcionários públicos e as empregadas domésticas. Os resultados do último trimestre de 2019 se revelaram piores que o esperado e o abalo da economia chinesa pelo coronavírus rapidamente derrubou as expectativas de crescimento do Brasil.
Para não engolir o sapo sozinho, o pêndulo novamente se deslocou: Bolsonaro rejeitou a sugestão de Guedes e efetivou o general Braga Netto na Casa Civil, queridinho de parte dos bolsonaristas pelo comando da intervenção militar no Rio de Janeiro em 2018. Para completar, o governo acirrou a crítica aos parlamentares tomando como mote o montante das emendas impositivas no orçamento de 2020. Primeiro foi o general Heleno que atacou a “chantagem” dos deputados e disse que era hora de “convocar o povo às ruas”. Depois o próprio presidente que compartilhou a convocação a manifestação contra o Congresso no próximo dia 15.
A falsidade da disputa, no entanto, é óbvia. Bolsonaro votou a favor das emendas impositivas dos parlamentares em 2015 quando era deputado. Já como presidente, não vetou a ampliação das emendas impositivas das bancadas, a qual recebeu o voto de Eduardo Bolsonaro que então celebrou a vitória do Legislativo e a independência entre os poderes.
O que vale para Bolsonaro é que, se o país não crescer, já terá posto a culpa em alguém. E caso melhore, poderá dizer que as manifestações deram certo.
O papel da esquerda diante do golpismo
Todos devem lembrar que não é a primeira vez que Bolsonaro alimenta uma manifestação semelhante. Em maio de 2019, logo após divulgar um texto em que era apresentado como alvo de conchavos do Congresso, aconteceu algo parecido.
Não acho que o presidente esteja pensando em golpe — não por falta de vontade, mas porque ainda tem perspectiva eleitoral e porque boa parte das Forças Armadas e do mercado não parecem dispostos a tamanha aventura. Mais crível é que o presidente queira pressionar o Congresso ao atestar que possui um apoio popular consistente — nas ruas assim como na internet — em paralelo ao patrocínio do núcleo duro da elite que vem recebendo da FIESP.
O Bolsonaro aproveitou o primeiro ano de governo para atentar contra a autonomia de instituições subordinadas ao Executivo (Polícia Federal, Receita Federal, universidades, Ancine, entidades ambientais), mas não conseguiu fazer o mesmo naquilo que depende do crivo do Congresso. Dito de outro modo: os afagos ao Congresso serviram a aprovação da reforma da Previdência e o pacote Anticrime, mas o governo nem passou perto de aprovar medidas grosseiras e primitivas como a liberação das armas, o excludente de ilicitude, a transferência da Funai, etc.
Se o parlamento de Maia resistiu até então, a esquerda não pode só confiar num Congresso formado, em larga medida, por uma classe empresarial favorável às reformas de Guedes e ciente que o temperamento do presidente pode acarretar um cenário desfavorável a aprovação das mesmas. Não é difícil imaginar que os deputados pressionem Rodrigo Maia a aceitar o enfraquecimento da democracia em troca do governo entregar as reformas econômicas ou outro favores (ainda mais em ano de eleição em que o presidente tem na mão o calendário de liberação das emendas).
Por isso, é importante que um ciclo de manifestações já esteja agendado para março onde a esquerda defenderá as instituições democráticas — o que não inclui a defesa do impeachment já que assim daríamos uma “bandeira democrática” para Bolsonaro defender o seu mandato, abrindo uma via para o golpismo no mesmo momento em que o presidente enche a cúpula do Planato de militares.
Ir para as ruas inclui, isso sim, fornecer respaldo popular às figuras do centro político que, ao menos até então, tem defendido a democracia — caso de Rodrigo Maia e o ministro do STF como Celso de Mello.
Por outro lado, a esquerda não pode se limitar a descer às ruas e bradar pela democracia, sob o risco de se identificar com o centro político e pôr em xeque a sua ferramenta mais valiosa: a imaginação política. Em 1992, por exemplo, os caras pintadas, muito obcecados pela ida às ruas e pelo Fiat Elba de Collor, acabaram patrocinando o projeto político que veio em seguida.
Além de enunciar uma alternativa ao projeto político-econômico do governo que marque a singularidade da posição da esquerda (revogação do Teto de Gastos; auxílios e garantias aos uberizados; renovação do programa Saúde da Família para enfrentar o coronavírus; vários dos itens presentes no Plano Emergencial de Emprego e Renda do PT), está também na hora de pensar em atuações estratégicas para além das manifestações nas ruas.
Tomando um exemplo da esquerda norte-americana: o aplicativo BERN, lançado pela campanha de Bernie Sanders nos Estados Unidos, é um meio de articulação dos voluntários que então se auto-organizam e atuam, de modo descentralizado, em visitas a domicílios, multirões de telefonemas, reuniões com outros voluntários, compartilhamento de informações, crowdfundings, etc. Dizer que Bolsonaro é um risco a democracia não basta, o que precisamos é reconstruir os vínculos da esquerda.