O governo Bolsonaro é insustentável: questões de ordem prática
Ameaças sempre fizeram parte do discurso bolsonarista. A começar pelo general Villasboas que entrou na história como protagonista da eleição de Bolsonaro ao chantagear o STF às vésperas do julgamento de Lula. O bordão “é melhor jair se acostumando” do período eleitoral até as recentes advertências do tipo “não se assustem se alguém pedir o AI-5” ou “se a esquerda radicalizar, uma resposta pode ser via novo AI-5”
Ninguém duvida que o desejo bolsonarista seja, de fato, qualquer coisa tão autoritária como o AI-5. Mas não é improvável que várias dessas ameaças, especialmente ao longo do primeiro ano de governo, quisessem convencer a oposição de que não haveria outra solução senão o impeachment.
Bolsonaro sabia que a fidelidade de 1/3 do eleitorado, a promessa de crescimento ostentada por Guedes e a amizade com Trump eram trunfos mais que suficientes para livrar sua cara. O resultado final, além da vitória no Congresso, seria o endosso da lógica paranóica do presidente contra o sistema que mobiliza continuamente os bolsonaristas.
É certo que as ameaças não descansaram sequer durante a pandemia. Desta vez, no entanto, as bravatas do presidente tinham objetivos ainda mais precisos: conturbar o debate público para que as vítimas da pandemia não ocupassem as manchetes.
Se Bolsonaro não pode abrir mão de ameaçar o sistema, não é menos certo que está, mais do que nunca, vulnerável contra um eventual impeachment. Assim como a classe média ficou horrorizada com as demissões de Mandetta e Moro, o programa de Guedes está desacreditado e até a reeleição de Trump está em xeque. Não foi sem razão, portanto, que o presidente foi atrás da escolta parlamentar do Centrão.
Bolsonaro foi deputado por 22 anos, votou dois impeachments e sabe que uma base de séquitos garante o salvo conduto — ou, pelo menos, fará Maia pensar duas vezes antes de autorizar um dos 35 pedidos para abertura de processo de impeachment que estão em sua mesa. Foi assim que excelsos da política nacional como Roberto Jefferson e Valdemar Costa foram aliciados para montar a insígnia em troca de duas coisas que ninguém melhor que o presidente pode oferecer: proteção contra a Justiça e cargos no governo.
A proteção foi garantida, em primeiro lugar, pelo expurgo do ex-juiz Sérgio Moro — persona non-grata dos congressistas, especialmente das lideranças do Centrão que ainda respondem processos da Lava Jato. Em seguida, Bolsonaro cumpriu a promessa de interferir na Polícia Federal, do mesmo jeito que fizera anteriormente em outros órgãos e agências reguladoras subordinadas ao Executivo (PGR, Receita Federal, Ibama, Anvisa, Receita, etc).
Na contra-mão, o presidente não esperava um Supremo tão unido como poucas vezes se viu. A partir do momento em que a queda de Moro aproximou a ala lavajatista (Barroso e Fux) e a ala garantista (Gilmar Mendes e Lewandowski), o reforço da colegialidade garantiu o ímpeto para ações ousadas como o inquérito das fake news. O que prova, entre outras coisas, a disposição renovada dos ministros em limitarem a sanha do presidente e seus protegidos.
O loteamento de cargos, por sua vez, vai muito bem, obrigado — inclusive é possível acompanhá-lo pelo #centrômetro, portal criado pelo MBL que detalha a distribuição de vagas ao Centrão. Não deve demorar muito para que os recém-empossados percebam que o ajuste fiscal logo na saída da pandemia — tal como preconizado por Guedes aos arrepios dos militares — vai de encontro às pretenções de acesso aos fundos públicos. Como explica Marcos Nobre, “não interessa aos partidos e grupos que fazem parte da megacoalizão de governo (seja qual for o governo) dispor de ministérios, cargos e verbas se não podem efetivamente lançar mão dos recursos, mesmo que sejam escassos”.
Outra moeda que Bolsonaro tem a oferecer aos deputados diz respeito ao apoio nas eleições municipais. Para isso, no entanto, não pode abrir mão da renovação Renda Básica Emergencial — afinal, se a popularidade de Bolsonaro não despencou à medida que crescia o ceticismo da classe média, foi só porque a queda foi amortecida pelo aumento da aprovação entre as classes baixas, em especial no Norte e Nordeste. Em outras palavras: mesmo que os R$ 600 tenham sido façanha do Congresso (Guedes oferecera apenas R$ 200), a operacionalização de todo o programa na Caixa, sem participação de nenhum outro banco ou fintech, vinculou em definitivo a imagem do programa ao governo federal — razão pela qual o apoio de Bolsonaro aos candidatos locais pode ser decisivo contra o enraizamento petista das regiões mais pobres do país..
O problema, mais uma vez, é a desproporção entre o populismo de Bolsonaro e os planos de Paulo Guedes. Para medir o impacto do fim (ou diminuição) do auxílio na popularidade do presidente, o diretor do Ipea, Marcelo Moura, conta que “em Codó, no interior do Maranhão, 8 em cada 10 entrevistados acreditam que o benefício de R$ 600 é permanente. Não sabem que é temporário”. Da mesma maneira que levou o crédito, é o mesmo Bolsonaro que pagará o preço pela revogação.
O presidente até tentou jogar a culpa pela recessão no colo dos governadores — o que significaria, é bom que se diga, a reversão da tradicional estrutura de responsabilização da política brasileira em que o presidente é avaliado pela economia, enquanto os governadores e prefeitos pela saúde e segurança pública.
O tiro, no entanto, saiu pela culatra. A cabo de tantos vitupérios e pronunciamentos abjetos, Bolsonaro se tornou o protagonista, ainda que ao revés, da crise sanitária, onde será tomado como o vilão do genocídio em que o país já é o terceiro do mundo em número de mortos. Por outro lado, através da distribuição do auxílio emergencial, ficou claro que os instrumentos econômicos estão nas mãos do governo federal, a quem cabe cobrar e responsabilizar pela recessão que bate à porta.
Não é difícil adivinhar que os deputados, por mais fisiológicos que sejam, vivem de votos e jamais hesitarão em abandonar a base ao passo que a popularidade do presidente despenque. Mesmo que ainda reste o núcleo duro do bolsonarismo — equivalente a 12% do eleitorado segundo pesquisa do Datafolha — os outros 88% já começaram a sair às ruas para protestar contra o governo. Já começaram, de jeito tal, que não há quem os pare — seja o Centrão, seja os bolsonaristas raiz.