Moro é o verniz do bolsonarismo

Rodrigo de Abreu Pinto
3 min readApr 25, 2020

--

Que ninguém se surpreenda com a investida de Bolsonaro contra a Polícia Federal de Sérgio Moro. Agindo assim, o presidente renovou os ataques contra a autonomia de instituições subordinadas ao Executivo que marcaram seu governo até então. Os exemplos são muitos: Receita Federal, Coaf, Ancine, Inpe, universidades, Itamaraty, etc.

Projeto para pintura (1958) de Willys de Castro

Aproveitando-se da absorção da mídia pelo COVID, Bolsonaro julgou que era hora de aparelhar a diretoria da PF. Quando Moro reagiu, Bolsonaro surpreendeu e não recuou

Além da vaga no STF, fatos recentes convenceram o presidente de que teria cacife para peitá-lo: as manifestações eloquentes do último domingo; a aproximação a políticos do Centrão; a popularidade entre os mais pobres com a liberação do auxílio emergencial; o crescente protagonismo dos militares. A baixa pressão que sofrera pela demissão de Mandetta parecia reluzente.

O tiro, no entanto, saiu pela culatra. Diferente do ministro da Saúde, Moro tem experiência com delações, vazamentos e espetáculos, que fizeram a fama da operação Lava Jato.

De todo modo, as coisas que Moro revelou, ao pé da letra, não impressionam. Não só porque lhes faltam valor probatório, como a delação de Palocci que o ex-juiz soltou às véspera da eleição. Mas porque no Brasil inaugurado com o golpe de 2016, a normalização de práticas anti-institucionais, desde que usadas contra o inimigo, tornou-se regra. E o próprio Moro se notabilizou por conduções coercitivas, delações induzidas, grampos ilegais e cerceamento da defesa.

O problema não é o que foi falado, até porque a Vaza Jato mostrou coisa muito pior e a popularidade de Moro não ruiu, assim como ninguém caiu da cadeira quando ficou claro que Bolsonaro não combate a corrupção.

A questão é o emissor, o mesmo que cimentou a ascensão de Bolsonaro à medida que a Lava Jato incitou a bolsonarização da esfera pública (o termo é de Esther Solano).

Foi por isso que Moro pareceu, aos olhos de Bolsonaro, o melhor nome para dar forma jurídica e contornos legais a necropolítica do seu governo. O ministro da Justiça, é bom que se diga, cumpriu bem o papel: atuou como advogado do presidente no esquema de laranjas do PSL e no assassinato de Marielle; silenciou sobre os liames incestuosos entre a famiglia e as milícias; anuiu os inúmeros decretos das armas; decretou a deportação sumária de estrangeiros considerados “perigosos”; consentiu aos motins policiais no Ceará; vetou a liberação de presos durante a pandemia. Além do pacote anti-crime, principal feito do ministério da Justiça, que institucionalizava o extermínio policial como forma de governo.

Ao mesmo tempo que o ex-juiz conferia o verniz jurídico ao bolsonarismo, Bolsonaro rifou a sua vaga no STF para os evangélicos. Do mesmo jeito que ensaiou dividir o Ministério da Justiça, para recriar o ministério da Segurança Pública e oferecê-lo à bancada da bala, ao que Moro reagiu e quase pediu demissão. Se fez agora, portanto, é porque o contexto se alterou.

A recente aproximação ao Centrão atestou a preocupação do presidente com um processo de impeachment a reboque das mortes pela pandemia. Se Moro decidiu pular fora, não pelos deputados do blocão (ele convivia pacificamente com Onyx Lorenzoni e Marcelo Alvaro Antônio), mas para salvar sua candidatura em 2022, a qual depende da separação antes que o barco afunde.

O mártir de Moro é simultâneo ao fato de que as franjas até então bolsonaristas — principalmente as mais escolarizadas que batem panela durante a pandemia — descobriram alguém munido de projeto de poder, sendo que desprovido dos trejeitos canhestros do presidente. É o anti-petismo e a brutalidade sanguinária, enfim, para além do bolsonarismo.

Pois o morismo seria capaz de higienizar a direita egressa dos porões da ditadura para torná-la, ainda assim, uma direita em que a coerção é dispositivo de governo. Enquanto Moro encarnaria a figura do gestor que preserva a ordem pública por meio de armas e uma dose mínima de racionalidade. Perto de Bolsonaro, afinal, isso basta para que pareça sensato.

O futuro é imprevisível e nem mesmo a ruína de Bolsonaro é antecipável. O certo é que, até lá, sem uma esquerda digna do nome, Bolsonaro, Sérgio Moro e Bolsodória disputarão protagonismo. Três variantes de uma coisa só: quem blefar antes e mais alto, leva.

--

--

Rodrigo de Abreu Pinto
Rodrigo de Abreu Pinto

Written by Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.

Responses (1)