O mundo novamente bipolarizado: a ascensão chinesa
Em que medida o fim da Guerra Fria significou a ascensão dos Estados Unidos como única potência mundial?
Nos anos seguintes a queda do Muro de Berlim, a China ainda não tinha consciência do potencial econômico que tão logo se revelaria. A Rússia, por sua vez, estava fragilizada e às voltas com a dissolução da URSS. Enquanto a Europa, fraturada em divisões internas, não questionava a hegemonia norte-americana, à vontade numa posição secundária quanto às decisões internacionais.
Em meio a globalização que melhor caracterizava o novo tempo, surgiu um novo modus operandis das relações internacionais, baseado no princípio das vantagens comparativas como chave para o desenvolvimento das nações. Segundo tal princípio, o livre mercado, signo do fim da Cortina de Ferro, estabeleceria uma cadeia de trocas global que beneficiaria à todos. De modo mais preciso: o livre mercado, ao favorecer a especialização de cada país nas atividades em que possuía vantagens comparativas, viabilizaria um aumento geral da produtividade que propulsaria o mundo.
A moral da história é que todos sairiam ganhando — e se alguns países ganhariam muito mais do que outros, isso era considerado um problema menor. Mas o que ninguém esperava é que um país subdesenvolvido como a China saberia tirar tanta vantagem de uma ordem econômica liberal de mercados abertos.
Por um lado, a China contou uma ampla gama de compradores dos seus manufaturados. O principal parceiro comercial era justamente os Estados Unidos: enquanto o consumo dos americanos era fortemente estimulado pelo sistema de crédito e endividamento privado das famílias, a China controlava o câmbio e submetia os trabalhadores a condições condenáveis. Era isso que tornava os produtos chineses irresistíveis e lhes garantia enormes superávits comerciais, perante os Estados Unidos, ano após ano.
Por outro lado, o livre mercado garantiu o acesso chinês a produtos tecnológicos de ponta e com preços acessíveis. Não satisfeito em apenas importá-los, o ingresso das mercadorias foi baseado em um processo de absorção tecnológica (atração de mão de obra qualificada, importação de máquinas e as criticadas quebras de propriedade intelectual) que paulatinamente permitiu o salto chinês à padrões tecnológicos de última geração.
O Estado chinês, em parceria com o setor privado, ainda investiu na compra de grandes empresas estrangeiras de tecnologia (que garantiram um know-how valioso ao país), assim como estabeleceu uma política industrial rigorosa para conferir competitividade às empresas locais. Esse arranjo viabilizou o processo de desenvolvimento tecnológico que deixou para trás as “cópias tecnológicas” e abriu espaço para que a China possuísse um avançado campo de inovação à altura do congênere americano.
Em vias de se tornar uma super potência, não bastava que a China alcançasse os padrões tecnológicos americanos em termos de softwares, 5G, celulares ou serviços financeiros, restando-lhe que assumisse uma postura mais ativa e altiva na política externa (para usar os termos de Celso Amorim). Não demorou e temos assistido o gigante oriental se envolvendo crescentemente em ações de manutenção da paz, operações antipirataria e mudança climática, além de usar os palanques dos órgãos multilaterais para enaltecer uma visão cooperativa da ordem internacional.
Diferente do contexto logo após a Guerra Fria, o certo é que a China cresceu e tomou consciência do seu papel na ordem internacional. Outra prova disso está nas instituições paralelas que os chineses conceberam como alternativas aos órgãos em que o peso americano é decisivo. Nesta tarefa de empreendedorismo institucional, a China liderou a criação do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (complementar ao Banco Mundial); do Grupo de Avaliação de Crédito Universal (para atuar ao lado do Moody’s e da S&P); da bandeira China UnionPay (idêntica ao MasterCard e Visa); e do próprio BRICS (à altura de disputar hegemonia com o G7).
Com efeito, a última novidade chinesa é o projeto da nova Rota da Seda, um programa financiamento de infraestrutura regional e global (principalmente na área de transporte) que está transformando e interligando a China com o restante da Ásia e partes da Europa, da África e do Oriente Médio — ou seja, algo como um Plano Marshall Chinês do século XXI. Ao final, China estará mais conectada ao restante do mundo e, não menos importante, terá se tornado uma provedora de bens públicos globais, a exemplo do que faz um Império.
Mas, afinal, como tem reagido os Estados Unidos enquanto sua hegemonia cede lugar a uma ordem bipolarizada? As respostas tem sido erráticas e vão desde a apelar ao regresso para um regime medieval de sanções, sobretudo contra a China, até os desacertos militares no Oriente Médio (basta olhar o estado em que estão o Iraque, o Afeganistão, a Líbia e a Síria) e a mais recente operação contra Soleimani.
O caso é o seguinte: os americanos não imaginavam que os demais países se adaptariam tão facilmente num mundo em que os Estados Unidos não atuassem enquanto potência fiadora da ordem internacional. No entanto, esse mundo não é só possível, como ele já existe. Basta observar algumas situações em que o Império norte-americano arredou o pé e ninguém caiu:
— Em 2008, o gasto privado norte-americano caiu vertiginosamente com a crise mundial. A China, então dependente dos superávits junto aos americanos, rapidamente compensou a perda daquele mercado ao penetrar mais fortemente nas demais economias em desenvolvimento, inclusive na Europa (onde os smartphones da Huawei já representam 1/3 dos aparelhos em circulação no continente, por exemplo).
— Em 2017, a saída dos Estados Unidos da Parceria Transpacífica, em vez de sepultar o grupo, incentivou os remanescentes a acirrarem ainda mais os laços e acordos comerciais.
— Em 2019, o aumento das tarifa de importação do aço e do alumínio, por parte do governo americano, não desesperou os países exportadores desses produtos. Esses países se aproximaram-se da União Europeia e da China, o que forçou Trump a voltar atrás e negociar o fim das tarifas para países como Canadá e México.
— Recentemente, quando a China surpreendeu e não baixou o tom na batalha comercial com os Estados Unidos, ficou claro como a estratégia chinesa de incentivo ao mercado interno já diminuiu o poder de barganha dos EUA quanto ao acesso aos compradores americanos.
Para que não reste dúvidas: mesmo sabendo do crescente poderio militar dos chineses e da nova retórica belicista de Trump, não acho que estejamos sequer perto de um conflito armado entre americanos e chineses. A própria China já deu exemplo de que não pretende se envolver militarmente com os Estados Unidos ao reduzir seu apoio ao regime venezuelano no momento em que o Congresso Americano entrou em atrito com Maduro.
Penso que é inevitável que ambas nações se entendam, afinal, caso contrário, as consequências de uma disputa entre ambos é inimaginável. É certo que ambos países acabaram de assinar um acordo comercial que não passa de um compromisso limitado, mas que já é um primeiro passo na costura de uma nova ordem internacional.
Por mais que o ataque a Soleimani indique o contrário, os Estados Unidos precisam se adaptar ao novo tempo do mundo em que já não impera sozinho. Só assim poderemos novamente nos encaminhar para um cenário de maior cooperação internacional.