O ornitorrinco e a Bovespa

Rodrigo de Abreu Pinto
5 min readJan 6, 2021

Inseridos numa situação que afetou a todos, a pandemia, a experiência coletiva do adoecimento, escancarou a nossa vulnerabilidade e dependência mútuas. Assistimos algumas demonstrações contrárias ao egoísmo suscitado pela desigualdade do país, basta lembrar dos aplausos aos entregadores de aplicativo e o consenso nacional em defesa do SUS. Se o Brasil da indiferença assassina de Pugliese e Hang nunca deixou de existir, ao menos combate ao vírus engendrou mediações entre as contradições do país, em especial através do auxílio emergencial. A retirada desse, por sua vez, despejará milhões de brasileiros na pobreza, ao mesmo tempo que uma pequena parte dos brasileiros decola nas asas da recuperação acelerada do mercado financeiro, em especial da Bovespa (a bolsa de valores brasileira).

Cabeça de Touro (1942) de Pablo Picasso.

O Brasil é um país cuja identidade só se mostra na transformação paradoxal de uma coisa em outra. Tal como na famosa Cabeça de Touro de Pablo Picasso, onde a associação de um guidom com um assento de bicicleta produz uma imagem nova, só enxerga a imagem correta do Brasil quem enxerga os dois Brasis ao mesmo tempo. Chico de Oliveira dizia que éramos um ornitorrinco, bicho que não é isso nem aquilo, representação da feição incongruente da sociedade brasileira pela qual, no caso presente, a recuperação da bolsa de valores se deu em V e o mesmo se dará com a pobreza após o fim do auxílio emergencial.

Para apreender a simultaneidade contraditória que constitui o Brasil, cito três exemplos didáticos:

a) O otimismo com as vacinas que então turbina as bolsas de valores mundo afora, inclusive a nossa, contrasta com a letargia do governo federal quanto ao plano nacional de imunização, sem o qual o setor de serviços — intensivo em mão de obra e onde os mais pobres arrumam bicos — vai permanecer em farrapos já que extremamente dependente da circulação de pessoas.

b) A alta dos alimentos no mercado mundial, em razão do aumento da demanda, beneficia o agrobusiness e o valor das commodities nas bolsas internacionais, enquanto inflaciona o preço dos alimentos no mercado interno.

c) A manutenção da taxa Selic no piso histórico estimula a fuga dos investidores para a renda variável e causa euforia na Bovespa (onda de IPOs e follow-ons), muito embora surta efeitos muito mais tímidos no apetite dos empresários e no nível de atividade econômica.

Bairros de Horto Florestal e Mata Escura em Salvador (Google Earth).

Não se trata de demonizar o crescimento da bolsa em si mesmo, muito pelo contrário. Em lugar da compra de títulos da dívida pública do Tesouro, opção conveniente quando as taxas de juros eram estratoféricas, o investimento na bolsa canaliza a poupança pública para o setor produtivo e garante que as empresas acessem capital a custos melhores, o que é positivo. O papel do investidor, por sua vez, não é outro senão de selecionar as companhias mais eficientes, competentes e éticas, garantindo-lhes recursos para a expansão das suas atividades, e assim contribuem para o aumento do bem-estar da sociedade e do ambiente de negócios do país.

Por outro lado, é preciso ter em mente pelo menos duas coisas. Primeiramente, que só uma minoria elitizada detém ativos financeiros e diversificados — seja porque a educação financeira no país é precária, seja porque a grande maioria é descapitalizada e não sobra dinheiro no final do mês para “investir”. Dessa maneira, como a renda do capital é muito concentrada e apropriada pelos ricos, a guinada da bolsa, desacompanhada da melhora da economia real, equivale ao aumento da desigualdade.

Em segundo lugar, muito embora o aumento no valor das empresas listadas na bolsa estimule que as mesmas realizem novos investimentos produtivos, esses são defasados no tempo e dificilmente geram crescimento e contratação de mão-de-obra na velocidade necessária para a retomada econômica do país. O que é ainda mais verdadeiro no cenário em que os investidores não foram exatamente atraídos pelas promessas de investimento e inovação das empresas, e sim pela obsessão de ganhos através dos custos de oportunidade (fuga do Tesouro para a Bolsa num cenário de juros próximos de zero). Dito de outro modo: são acionistas teoricamente mais interessados na acumulação financeira de curto prazo (pagamento de dividendos e redução dos custos administrativos) do que em investimentos industriais mais arriscados e com prazo de retorno mais alongado.

As decisões de Paulo Guedes a respeito da manutenção do Teto de Gastos e do fim do auxílio emergencial estão diretamente relacionadas às pressões do mercado financeiro, onde o próprio ministro faz carreira. Os faria limers, com efeito, associam a sustentabilidade do crescimento da bolsa ao retorno imediato aos limites fiscais que estavam suspensos pelo Orçamento de Guerra, terminado no último dia 31. Contudo, como vimos acima, a produção de ativos financeiros de alta rentabilidade está longe de garantir o efetivo combate às desigualdades e ao efeito da súbita retirada dos estímulos econômicos sobre a demanda agregada. Muito pelo contrário, a subordinação dos investimentos públicos e dos programas sociais à lógica dos faria limers induz o anestesiamento Estado no momento de crise, justo quando esse é o único capaz de contrariar o efeito recessivo através pelo reforço da despesa e dos investimento públicos.

Ornitorrinco.

O que nos falta, e para isso a solução é mesmo mais difícil, é uma liderança minimamente capaz de construir consensos. Esta seria hora em que o presidente apareceria em rede nacional para admitir que estamos numa situação difícil, que o auxílio emergencial está acabando e a pandemia não, que a reorganização do país depende do sacrifício de todos, especialmente dos que mais podem contribuir. Seria hora de aproveitar a ascensão de confiança dos mercados mundiais — refletida no último mês pela diminuição do risco Brasil e a valorização do real — como um indicativo de que o mercado estará mais tolerante com uma política fiscal que flexibilize o Teto de Gastos. Hora de lembrar que é possível carregar uma dívida maior do que no passado — já que as taxas de juros são bem mais reduzidas — de modo a quitá-las no médio/longo prazo. Ou voltar ao tema da tributação sobre lucros e dividendos, por exemplo, para impôr perdas absolutas aos mais ricos e assim garantir a renovação do auxílio, mesmo que menor e mais restrito, sem aumento da dívida.

A solução do país não está só no gasto público, mas muito menos em seu corte intempestivo. É necessário contrapor ao pensamento prepoderante na bolha da Faria Lima. O problema é que há presidente, só não há presidência — “o Brasil está quebrado, chefe, eu não consigo fazer nada”, afirmou ontem.

--

--

Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife, é formado em filosofia pela FFLCH-USP e em direito pela PUC-Rio.