O pato está solto. As despesas que estão amarradas.
A surpreendente celeridade da tramitação da PEC do Orçamento Impositivo (PEC 34/2019) é sintomática. No recente julgamento da criminalização da homofobia, o STF criticou justamente o que esteve ausente na votação da PEC: a omissão e lentidão do Congresso. Mas a votação foi significativa não apenas pela agilidade da Câmara, pois é ainda mais espantoso o grau de acirramento entre Executivo e Legislativo em apenas três meses de mandato. Em paralelo a velocidade e prazos regimentais não observados pelos deputados, os noticiários se apressaram a comentar a acachapante derrota do governo e não explicaram direito a decisão. Até porque, no dia seguinte (27), não faltaram novas notícias da relação tumultuosa entre os poderes.
Caso o Senado aprove, a medida representará um complemento a Emenda Constitucional nº 86, aprovada em 2015 sob os auspícios de Eduardo Cunha, que tornou obrigatório os gastos com emendas individuais dos parlamentares no valor de 1,2% das receitas líquidas no ano do exercício. A PEC do Orçamento Impositivo estabelece a mesma obrigatoriedade às emendas das bancadas dos Estados, o que não significa que tais emendas não gozassem de nenhuma provisão até então. A Lei de Diretriz Orçamentária (LDO), lançada anualmente com as metas fiscais para o ano seguinte, sanciona numa das rubricas os gastos com as bancadas. Em 2018, por exemplo, determinou-se que 0,6% das receitas líquidas (R$ 4,6 bilhões) seria destinado para a realização dessas emendas.
Ainda assim, enquanto as emendas individuais estavam garantidas pela Constituição via EC 86, as emendas das bancadas eram previstas apenas pela LDO. Esta diferença era debilitadora já que, ao contrário do item constitucional, a antecipação no orçamento é mais autorizativa do que impositiva, de modo que as despesas eram constantemente flexibilizadas, adidas ou remanejadas, além de sujeitas ao risco de que o Executivo não as incluísse no próximo arranjo fiscal. O próprio Bolsonaro, ao liberar emendas durante as negociações da reforma da Previdência, foi acusado e respondeu: “Informo que não há verbas sendo liberadas para aprovação da Nova Previdência como veículos de informação vem divulgando. Seguimos o rito constitucional e obrigatório do Orçamento Impositivo, onde é obrigatório a liberação anual de emendas parlamentares.” O que não deixa de ser verdade, embora oculte que, mesmo constitucionais, as emendas individuais são alvo de disputas pois o Executivo é quem regula o timing das liberações (lembremos o que fazia Temer nas vésperas das votações das suas denúncias).
Assim sendo, as principais novidades da recém-votada PEC 34/2019 são:
1) Constitucionalizar os gastos obrigatórios com as emendas das bancadas dos Estados.
2) Ordenar o valor do repasse em 1% das receitas líquidas (mais do que o estabelecido em anos anteriores que girou entre 0,6–0,8%).
3) Determinar que o contingenciamento dos gastos com as emendas poderá ser realizado em caso de não cumprimento da meta fiscal, mas na mesma proporção da diminuição das despesas discricionários do executivo (assim como a EC 86 definiu anteriormente para as emendas individuais).
4) Fixar que o valor de repasse das emendas, a partir do segundo ano, será automaticamente corrigido de acordo com a inflação.
Resta saber se os novos gastos obrigatórios consentirão que a lei do Teto de Gastos, também constitucional, seja cumprida. A contradição explosiva entre a PEC e o Teto é a seguinte: na primeira, os valores (que estarão na LDO de 2020) serão definidos de acordo com a receita líquida de 2019; na segunda, a receita líquida de 2019, ainda que cresça, não alterará o limite de gastos do governo em 2020, já que o mesmo só é alterado de acordo com a inflação, tal como as emendas das bancadas serão a partir do segundo ano. Considerando que a política econômica de Paulo Guedes privilegia um fluxo de caixa imediato e de curto prazo, baseado em privatizações e desmonte do Estado, é muito provável que o governo aumente suas receitas em 2019, ainda que ocorra diminuição da receita de impostos pelo baixo crescimento, através das negociações envolvendo a cessão onerosa da bacia de Santos, a Eletrobrás, as fatias dos bancos públicos. Em resumo: o 1% da receita líquida de 2019, relativa às emendas das bancadas, uma vez tornada gasto obrigatório em 2020, tornará praticamente impossível o cumprimento do Teto de Gastos.
A única saída será contingenciar os gastos com as emendas e, consequentemente, também com as demais despesas discricionárias do Executivo. O problema é que o governo não pode cortar novas despesas sem pôr em xeque o seu próprio funcionamento. Afinal, o contingenciamentos do governo, diferente das reformas estruturais (previdência, tributária, servidores públicos, etc), não atingem as despesas obrigatórias (pagamento de salários, aposentadorias e benefícios assistenciais), mas a verba dos investimentos públicos (principal fator de geração de emprego e fortalecimento da demanda agregada) e dos demais gastos que permitem a máquina seguir funcionando. Nos últimos anos, os cortes exigidos pelo Teto de Gastos atingiram a expedição de passaportes, o patrulhamento das rodovias, a compra de medicamentos, etc.
Em 2019, as contenções já atingiram um nível crítico. Inicialmente, o orçamento das despesas discricionárias do Executivo foi fixado em R$ 129 bilhões. Logo em seguida, a contínua redução das expectativas exigiu, na mesma medida, a crescente diminuição daquela quantia. O último e maior corte, anunciado semana passado, contingenciou R$ 30 bilhões dos ministérios (somente Educação e Saúde não serão atingidos), delimitando tais gastos não obrigatórios em R$ 90 bilhões, uma contração fiscal de tal monta que representa o valor mais baixo desde 2008 (primeiro ano da série histórica disponível). Embora seja verdade que desde 2016 o governo conseguiu estabilizar suas despesas em geral (eram 19,9% do PIB naquela altura e atingiu 19,7% em 2018). Por outro lado, isto não ocorreu por causa do aumento do PIB ou do corte de gastos obrigatórios, mas por causa das contínuas reduções das não-obrigatórias, as mesmas cujos níveis já estão reduzidos a ponto dos serviços funcionarem em estado de provisão permanente.
Cada vez que as reformas estruturais e principalmente a retomada do desenvolvimento atrasam mais, a revogação do Teto de Gastos se torna mais urgente e crescem os riscos do governo sofrer um shut down antes mesmo de reverter a trajetória do endividamento. O que veio cedo foi o burburinho pelo afastamento do presidente recém-empossado, para o qual seria conveniente a desordem causada pela paralisação do governo. Se a PEC do Orçamento Impositivo foi aprovada na Câmara com 453 votos, para o impeachment bastam 342. Na mesma noite em que a Câmara aprovava a medida, o vice-presidente Mourão participou de um jantar organizado pela Fiesp. Para quem não lembra, a Fiesp foi uma das principais articuladoras do impeachment de Dilma Rousseff. O pato está solto, as despesas que estão amarradas.