O PSL é uma pedra no caminho da revolução conservadora
--
A relação entre Jair Bolsonaro e o PSL é uma bomba-relógio, e não é de agora. Afinal, não estamos falando de um candidato qualquer, mas de alguém que despontou em revoltas anti-partidárias, embora não necessariamente de direita (Junho de 2013), e ganhou força ao longo das passeatas verde-amarelas em que a camisa da seleção não tem cor de partido nenhum. Os eleitores de Bolsonaro não são militantes tradicionais, mas policiais, caminhoneiros e evangélicos que, através das redes sociais, engendraram uma capilaridade social que prescindia da máquina partidária ou do horário televisivo reservado aos partidos.
Isso tudo, porém, não muda o fato de que Bolsonaro faz parte (e não é de hoje) do sistema político cujo requisito básico é o partido. E, mais do que isso, sistema em que criar um partido do nada não é tarefa simples (basta lembrar do périplo de Marina Silva para legalizar a Rede ou do MBL que até agora não conseguiu).
Sabendo que não deveria desperdiçar a oportunidade, Bolsonaro se filiou ao PSL para a disputa presidencial. O acordo, firmado junto ao presidente do partido Luciano Bivar, incluía tal liberdade para ele e seus filhos que os outros partidos interessados (Patriota e Prona) não lhe ofereceram.
A carta branca, de fato, foi dada, mas não completamente. O PSL do Rio de Janeiro ficou nas mãos de Flávio Bolsonaro, enquanto Eduardo avassalou o diretório paulista. Já os dois principais cargos nacionais, por sua vez, ficaram com políticos antigos na sigla. Luciano Bivar (PE) permaneceu como presidente, a cargo do controle dos recursos e da elaboração do estatuto do partido. Já a liderança da bancada no Congresso, quem orienta as votações e decide quem integra as comissões temáticas, ficou nas mãos do Delegado Waldir (GO), que também já estava no partido antes.
À vista disso, o cálculo de Bolsonaro era pragmático: uma vez presidente, teria força para dominar o partido. Até porque, quem quer o partido elegesse, seria difícil não dar crédito a ele.
Dito e feito: Bolsonaro foi eleito e, consigo, fez do PSL a segunda maior bancada da Câmara (52 deputados).
À medida que Bolsonaro aplainou o terreno e ladeou a passagem, todo mundo montou sua barraca, e foi assim que o PSL se tornou um “acampamento do baixo clero” (a expressão é de Celso Rocha Barros). Ali, reuniam-se agendas heterogêneas, e nem sempre convergentes, como liberdade para empreender, diminuição do Estado, corporativismo policial, punitivismo, mandonismo local, redes de clientela.
Em resumo, entrou tudo que é gente, e para muitos Bolsonaro era um ótimo cabo eleitoral, mas não um mito (ou qualquer coisa de inquestionável). Não à toa, uma vez eleitos e com poder nas mãos, já não lhes faltariam culhões para contrariar o presidente ou, logo de cara, viajar a China sem pedir permissão, episódio que rendeu a antipatia de Olavo de Carvalho, guru do presidente, contra boa parte dos membros do PSL.
Já nessa altura, desenhou-se uma divisão no partido entre, de um lado, os parlamentares bolsonaristas/olavistas (Carla Zambelli, Bia Kicis, Orléans e Bragança, além dos filhos). E, do outro lado, os demais eleitos que prescreviam limites a soberania de Bolsonaro no interior do partido (Major Olímpio, Felipe Francischini, Joice Hasselman). A ilustração perfeita está na batalha fratricida pela candidatura a prefeitura de São Paulo: os olavistas acham que Orleans e Bragança (ou Datena) deve ser o candidato, enquanto Joice Hasselman é a preferida dos pesselistas.
O presidente Luciano Bivar, ciente do capital político que a faixa presidencial avalizava, colocava-se acima das disputas, disposto a punir quem subisse demais o tom contra Bolsonaro. Assim ocorreu com Alexandre Frota (SP), expulso do partido, e não tardaria a acontecer com Selma Arruda (MT), a “Moro de saias”, que meteu o pé antes. Em outro caso parecido, quando os filhos de Bolsonaro convenceram o pai a demitir Gustavo Bebianno (RJ), Bivar não se meteu a salvar o então membro do partido e potencial candidato a prefeito do Rio.
A reciprocidade, por outro lado, nunca praticada por Bolsonaro, despreocupado em retribuir a “gentileza” do partido em patrocina-lo. O motivo é simples: o PSL não era um partido que ele pudesse ser chamado “meu”. Por isso, ele não fez esforços em atrair deputados para o partido (o partido tem apenas um mais que no início do ano). Além disso, deu três ministérios ao DEM (Casa Civil, Saúde e Agricultura) e somente um ao PSL (o nanico do Turismo). E não fez esforço nenhum pela recente campanha nacional de filiação ao partido. A melhor coisa que fez ao partido, durante a recente trâmitação do projeto das novas regras eleitorais, foi não vetar o uso do fundo partidário para pagar advogados — instrumento útil ao PSL para responder o esquema de candidatas laranjas, que pode enrolar até o presidente.
Para alguém que interviu no Ministério Público, Receita Federal, Coaf, Polícia Federal, e até no Itamaraty, é lógico que, em algum momento, faria o mesmo no PSL. Foi então que Bolsonaro pressionou Bivar para que peitasse os deputados do partido, então dispostos a alavancarem a CPI da Lava Toga, o que era capaz de irritar o Judiciário e endurecer as investigações do caso Queiroz. Ora, Bivar bem que tentou, mas não deu jeito: dar vazão a CPI era o revide dos deputados contra a pouca monta que Bolsonaro fazia deles.
Para piorar, na mídia, o caso do laranjal do PSL ganhava proporção. Bolsonaro, insatisfeito com o partido, aproveitou a brecha e levou sua relação com o partido ao limite: “Esquece o PSL. O cara [Luciano Bivar] está queimado para caramba lá. Vai queimar o meu filme. Esquece esse cara, esquece o partido”, afirmou em alto e bom som para um dos seus apoiadores.
Erra, no entanto, quem acredita que o presidente está mesmo preocupado se o partido está queimado ou alaranjado, embora sirvam como excelentes desculpas. Na verdade, o ataque de Bolsonaro ao PSL é mais uma rodada da revolução conservadora que ele acredita estar levando a cabo. Era só questão de tempo para que Bolsonaro seguisse o exemplo dos seus congêneres europeus — Viktor Orbán (União Cívica Húngara), Andrzej Duda (Lei e Justiça) e Marine Le Pen (Frente Nacional) — e também quisesse o seu próprio partido.
Em meio ao Conservative Political Action Conference, evento conservador realizado em São Paulo no último final de semana, o professor de filosofia Rafael Nogueira resumiu bem o trajeto que vai do PSL até o partido do futuro:
“O PSL reuniu de improviso a direita desamparada. Foi um arranjo de momento. Naquele momento, era preciso trocar o pneu com o carro andando. Temos que definir agora nossa visão própria. É preciso criar um novo partido conservador.”
Se, em dado momento, Bolsonaro ensaiou a montagem de uma base multi-partidária com PFL e DEM, o verdadeiro horizonte sempre foi outro. Afinal, mais do que um governo, o que está em jogo é um movimento, o que explica porque atributos de um governo tradicional como estabilidade, mediação política e administração pública não servem como medida. Para conservar a feição de insurgência conservadora, é preciso outra coisa: renovar constantemente a luta contra a degradação da moral (tal como nas recentes censuras na cultura) e, não menos importante, contra o sistema político tradicional — o que agora é feito em detrimento do próprio partido, mas sob auspícios, é claro, das aspirações autocráticas do presidente
Agora, a estratégia de Bolsonaro consiste em afirmar que é preciso abandonar o PSL, ao mesmo que encomenda uma auditoria para encontrar desvios nas contas do partido de 2014 até hoje. Fazendo assim, cumpre dupla função. Primeiro, assevera que o partido é disfuncional, logo seria preciso largá-lo para que a revolta prossiga — mensagem que vale mesmo se Bolsonaro não sair do PSL imediatamente). Segundo, pode abrir uma brecha na lei para que os deputados bolsonaritas sigam seus passos sem perder o mandato (e os recursos do fundo eleitoral), o que aumentaria a chance do presidente realmente rumar à outro partido que aceite ser integralmente domesticado.
Em entrevista para O Globo (14/10), a advogada de Bolsonaro, Karina Kufa, admitiu que a formação de um partido do zero está descartada, já que não haveria condições da obtenção imediata do registro. Fora isso, o presidente estaria conversando com cinco partidos. Antes que perguntemos quais partidos seriam, é bom que fique claro que, na primeira querela, esse papo de partido conservador vai voltar a ordem do dia.
Acima de tudo, falar na criação do que ainda não existe é também dizer que a revolução está apenas começando.