O STF em 2019
Dias Toffoli assumiu a presidência do Supremo em setembro de 2018. Logo no discurso de posse, o ministro certificou sobre o tribunal: “não estamos em crise, estamos em transformação”.
Seja crise ou transformação, uma coisa é certa e foi dita pelo mesmo ministro: “é hora de a política retomar o protagonismo e o Judiciário se recolher ao seu papel tradicional”. Essa seria a principal missão de Toffoli como presidente da corte
Uma vez longe das polêmicas, a expectativa é que os efeitos do ativismo fossem remediados: mudanças constantes de interpretação; desconfiança da população; impacto orçamentário de várias decisões; afronta ao princípio da separação dos poderes; desunião entre os ministros.
No momento da posse de Toffoli, no entanto, Bolsonaro não era o presidente do Brasil. Nem sequer estava certo que seria — a facada fazia apenas uma semana e as pesquisas ainda não identificavam o seu favoritismo.
O resto da história nós conhecemos. O candidato da extrema-direita foi eleito com uma plataforma de confronto direto às instituições, dentre as quais o STF era o alvo preferido. Foi nesse contexto que, logo na abertura do ano legislativo, uma fração do Congresso se viu à vontade para ameaçar o Supremo com a PEC da Bengala, a CPI da Lava Toga, o projeto de lei que limita as decisões monocráticas dos ministros.
Para piorar, uma das primeiras decisões do ano, tomada pelo presidente do tribunal, foi astutamente desacatada pelos senadores. Dias Toffoli determinou que a votação para a presidência do Senado deveria ser fechada, tal como constava no Regimento Interno da casa, mas os senadores contrariaram a intromissão ao adotar a tática de declarar o voto no microfone após depositar a cédula na urna.
Em contexto tão adverso, o melhor opção não seria outra senão sair de cena — pelo menos até que a poeira abaixasse. Contudo, enquanto corte constitucional, o Supremo não poderia se retrair no momento em que chegava ao poder alguém tão pouco afeito ao compromisso democrático. Numa hora dessas, não é demais lembrar que presidentes autoritários, como Getúlio Vargas e os militares, decretaram a aposentadoria compulsória de ministros para então elegerem os seus próprios juízes.
O STF de Toffoli, portanto, era atravessado pelo imperativo de arbitrar os conflitos à distância e sem os holofotes de outrora, mas também atado ao compromisso de defesa da ordem democrática, essa sim sua verdadeira razão de ser.
Diante desse paradoxo, o tribunal adotaria uma postura razoável: contrair a performance, mas sem abandonar as questões fundamentais ao Estado de Direito, sobretudo quando desafiadas pela caneta do próprio presidente da República.
A primeira mudança se deu ainda antes de Toffoli assumir a presidência. Na ocasião, o Supremo mudou a interpretação do foro privilegiado e restrigiu as autoridades públicas que o STF teria a prerrogativa de julgar. Na prática, o tribunal abriu mão de julgar os políticos — ou seja, abriu mão de “poder” — em troca de menos exposição.
Já com Toffoli na cadeira presidencial, o Supremo não apenas retirou da pauta julgamentos polêmicos como a descriminalização do porte de drogas. Mais do que isso, a corte assumiu uma postura de deferência ao Executivo, especialmente em questões administrativas, tal como constava no “pacto entre os poderes” firmado entre Dias Toffoli e o presidente Bolsonaro. Através dessa lógica, o Supremo atendeu que o Estado não seria obrigado a fornecer medicamentos que não possuíssem registro na Anvisa. E numa decisão prenhe de consequências, o tribunal sancionou o projeto de privatização de Paulo Guedes ao deferir que a venda das subsidiárias estatais não dependeriam de aprovação do Congresso.
No entanto, em casos mais difíceis (isto é, em que a norma concede menos espaço para interpretação), as decisões do Supremo atestaram um apego a literalidade do texto, ao contrário da relação plástica que o tribunal convencionou admitir. Quando não permitiu os cortes nos salários dos servidores em momentos de ajuste fiscal, o STF ressaltou que a constituição determina não essa, e sim outras medidas emergenciais. Já no pleito em que avalizou a competência da Justiça Eleitoral para julgar os atos de corrupção que envolvam Caixa 02, mais uma vez o Supremo reiterou a letra fria da lei. Em ambos os casos, o STF jogou a obrigação no colo do Legislativo, a quem caberia alterar a lei.
Já o resguardo dos direitos fundamentais, por sua vez, constituiu a faceta mais afirmativa da corte, pela qual a opinião pública (ao menos uma parte dela) voltou a respaldar as decisões dos ministros. A começar pela defesa da livre expressão e discussão de ideias, ainda nas vésperas do 2º turno das eleições, quando o STF concedeu liminar que proibiu o poder estatal de limitar as manifestações dos alunos nas universidades (tal como ocorreu com o recolhimento da bandeira anti-fascista na UFF). “Não é a autoridade pública que vai fazer um filtro paternalista e antidemocrático”, afirmou o ministro Alexandre Morais. Foi o primeiro recado ao governo Bolsonaro.
Em seguida, o STF julgou a criminalização da homofobia, mesmo que para isso tenha se indisposto com a importante base evangélica do governo. Sem negar que a omissão em tratar do tema foi do Congresso, o Supremo julgou necessário firmar de pronto uma interpretação em proteção aos direitos da comunidade LGBT. Mais recentemente, a corte também foi rápida em conceder uma liminar contra a censura de obras com temática LGBT na Bienal do Livro (RJ).
Quando o governo Bolsonaro tentou sobrepujar o Legislativo e governar via decretos ou medidas provisórias, foi também o Supremo que interviu sem demora. Os ministros anularam os decretos do presidente que aboliam os conselhos civis da administração federal, importantes instrumentos de participação social, já que foram criados por projetos de lei e a extinção só poderia se dar através do Congresso. No caso da MP que transferia a prerrogativa de demarcação de terras, originalmente na Funai, para o Ministério da Agricultura, o STF derrubou pelo placar elástico de 11x0, indicando que o Legislativo já tinha rejeitado a mudança e não cabia ao Executivo insistir. No momento em que chegou a vez de analisar os itens do decreto das armas, os quais claramente excediam os temas que poderiam ser editados pelo presidente via decretos, foi o próprio governo que revogou o decreto e enviou um projeto de lei, antecipando a decisão do Supremo.
Se a democracia, através do STF e outras instituições, tem revelado certa resiliência, não é menos verdade que o governo, entretanto, ainda está começando. O presidente Bolsonaro já meteu a mão nos mais diversos órgãos — Polícia Federal, Receita Federal, Procuradoria Geral e até no Itamarary — e certamente tentará o mesmo ocorrerá na corte, sobretudo na altura em que fizer suas nomeações. Sendo assim, para que o tribunal permaneça incólume, será fundamental o mesmo ingrediente que outrora fortaleceu o tribunal: o respaldo popular.
Na contra-mão disso, o tribunal terá uma agenda de votações extremamente polarizada, como o julgamento sobre a prisão em 2ª instância, em que a decisão inevitavelmente tomará um viés plebiscitário. Ao menos, ajudará se o STF evitar novas decisões desastradas como o inquérito das Fake News, a censura ao portal Crusoé e a investigação a membros do governo (caso recente do senador Fernando Bezerra Coelho), todas realizadas sob críticas da da Procuradoria Geral. A corte já não pode errar, nem muito menos manter as disputas internas (“grupo do Gilmar” x “grupo do Barroso”), afinal, o verdadeiro perigo tem nome e sobrenome.
Num país em que a constituição foi responsável pela reinvenção da sociedade, a corte constitucional não pode falhar quando os espectros do passado regurgitam.