O melhor embate na reunião ministerial foi sobre economia

Rodrigo de Abreu Pinto
5 min readMay 24, 2020

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O vídeo da reunião ministerial é a constatação brutal da ausência de qualquer coisa parecida a um ‘projeto de governo’. Sem isso, afinal, resta que os ministros beijem a cruz enquanto batalham por influência. E o resultado não é outro senão um aparelho de Estado disfuncional cujos ministros atuam em caminhos divergentes.

Quem teve a oportunidade de assistir a reunião na íntegra, certamente notou que o melhor embate — talvez o único digno do nome — versou sobre o projeto de retomada econômica após a pandemia. O presidente, incapaz de arbitrar a disputa, só abriu a boca para dizer que o Banco do Brasil só seria privatizado em 2023.

De um lado, estavam os ministros partidários ao papel indutor do Estado na saída da crise, cientes da recessão que bate à porta, embora não renunciem a valorização do setor privado, as reformas do Estado e o apoio às privatizações — Braga Netto (Casa Civil), Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), Tarcísio de Freitas (Infraestrutura).

Do outro lado, os ministros nocivos aos investimentos estatais, para quem a política econômica pré-pandemia estava prestes a decolar, bastando então retomá-la — Paulo Guedes (Economia) e Onyx Lorenzoni (Cidadania).

A discussão partiu do chamado Pró-Brasil — programa de investimentos públicos em obras de infraestrutura — apresentado pelo ministro da Casa Civil. Crítico ao plano, Paulo Guedes atacou: “(…) não vamos nos iludir. A retomada do crescimento vem pelos investimentos privados, pelo turismo, pela abertura da economia, pelas reformas. Nós já estávamos crescendo.” Logo em seguida, Onyx completou: “Recebemos o governo com trinta e seis mil obras paradas. Oriundas da onde? Do PAC! Só pra lembrar!”

A posição de ambos está ancoradas no anti-estatismo radical — descendente da Escola de Chicago e cujos herdeiros nacionais são os think thanks ultra-liberais — patrocinadores da tese de que o investimento estatal é ineficiente, além de afastar os investidores privados pelo risco da dívida pública e a inflação. Caberia ao Estado não mais que o cuidado com as contas públicas, e uma vez retomada a confiança dos empresários, o mercado faria o resto do serviço.

Calhou ao ministro Marinho defender o oposto: “Eu tenho visto governos extremamente liberais preparando programas de reconstrução, levando em consideração a necessidade de que o Estado nacional passe a ter um papel diferente como tomador de risco nesse momento em que há uma queda abrupta da liquidez.” Dirigindo-se a Bolsonaro, Marinho quase suplicou: “O que eu peço é que (…) os dogmas, quaisquer que sejam eles presidente, sejam colocados de lado nesse momento”.

O Estado seria o álibi ideal para evitar que a economia tropece logo na saída da crise. Pois através dos investimentos públicos, a criação de novos empregos compensaria ao menos parte da demanda reprimida, acelerando a fuga contra a inevitável recessão. Faltando ainda a definição se os recursos viriam do afrouxamento das regras fiscais ou mesmo da adoção de formas não convencionais de financiamento, como a emissão de moeda. O certo é que, completou o ministro Tarcísio, “a gente vai precisar de fazer alguma coisa imediata (…) isso é realmente necessário para gerar emprego, para dar a reposta que a sociedade tá querendo e conjugando isso com o investimento privado”.

A atual disputa reprisa a difícil química entre neoliberalismo e desenvolvimentismo no interior dos governos. Durante a era FHC, a ala neoliberal (Pedro Malan, Gustavo Franco e Armínio Fraga) prevaleceu contra os neoliberais moderados (José Serra e Dorotéia Werneck). Já no governo Lula, a dupla Antônio Palocci (Fazenda) e José Dirceu (Casa Civil) inicialmente levou a melhor sobre os desenvolvimentistas Guido Mantega (Planejamento) e Dilma Roussef (Minas e Energia). O jogo virou quando Palocci e Dirceu foram afastados por problemas de corrupção, momento em que Mantega subiu para a Fazenda e Dilma para a Casa Civil, resultando numa química com menos neoliberalismo e mais desenvolvimentismo.

Foi assim que Lula lançou o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), baseado na recuperação do papel indutor do Estado via investimentos públicos, logo no início do segundo mandato. Diante do que era praticado no Brasil desde a redemocratização, a economista Leda Paulani atesta que “o PAC foi um pequeno ato de rebeldia, pois não combina em nada com um receituário que visa diminuir a dimensão e a importância do Estado”.

Slide do programa Pró-Brasil.

O Pró-Brasil de 2020, é bom que se diga, não tem nada de rebeldia. Primeiro, porque estamos numa recessão em que não há nada mais ortodoxo que a elevação dos gastos públicos. Segundo, porque o volume de gastos do PAC foi muito maior do que o previsto para o Pró-Brasil (falou-se em R$ 30 bilhões iniciais). Por fim, o PAC não foi um mero programa de investimentos públicos, mas um laboratório institucional que viabilizou uma ampla coordenação das ações governamentais na área de infraestrutura — bem diferente do Pró-Brasil, até agora só apresentado em slides mal desenhados e explicados

Por isso, seria exagero falar numa virada desenvolvimentista propriamente dita. Sendo que a recente ascensão de Rogério Marinho (nomeado ministro em fevereiro), além do crescente protagonismo do ministro de Tarcísio ao longo do primeiro ano de governo, resulta que o Posto é cada vez menos Ipiranga. O que ficou comprovado pelo próprio desassombro do ministro Marinho em peitar Paulo Guedes na reunião ministerial.

O lançamento do Pró-Brasil, de todo modo, não foi o “Valeixo” de Guedes e o ministro segue no governo, não se sabe até quando. Se a defesa do fim do Estado soava bem enquanto a corrupção era compreendida como a causa da recessão econômica, o cenário mudou e a política ultra-liberal de Guedes é incompatível com as ambições — tanto eleitorais quanto existenciais — do presidente Bolsonaro.

Em termos eleitorais, o presidente precisa da manutenção do auxílio emergencial e do combate ao desemprego para amortecer a queda na aprovação do governo. Para se ter uma ideia, em pesquisa da XP/Ipespe, realizada ao final de abril, 62% defenderam “mudar a política econômica com mais investimentos do governo”.

Em termos de sobrevivência, Bolsonaro já se aproximou de parte dos partidos do Centrão para travar o impeachment. E esses exigirão, em troca da proteção, cargos em ministérios e estatais que tenham quinhões para gastar. Além de que são partidos médios, muitas vezes menos ligados ao capital financeiro do que às empresas de pequeno/médio capital, as quais dependem que o gasto público impulsione o mercado interno de bens de consumo e serviços.

Se não resta dúvida da interferência na Polícia Federal, está cada vez mais claro que o ministério da Economia também não sairá imune. Por mais que eu julgue fundamental um plano de investimentos públicos para debelar a crise, é impossível crer que um plano com slides tão bisonhos, a má vontade do ministro da Economia e os interesses pouco republicanos do Centrão possa realmente funcionar.

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Rodrigo de Abreu Pinto
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Written by Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.

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