Petrobrás: os militares já não tem bússola para perseguir um norte diferente dos liberais

Rodrigo de Abreu Pinto
5 min readFeb 24, 2021

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A saída estapafúrdia de um liberal como Roberto Castello Branco, então substituído pelo general Joaquim Silva e Luna na presidência da Petrobrás, rapidamente inspira as comparações entre o atual momento e as primeiras horas da ditadura militar iniciada em 1964. Ali, logo após a consumação do golpe, os militares convocaram dois economistas ortodoxos e ultraliberais para chefiar a política econômica do governo — Otavio de Bulhões e Roberto Campos. Não tardou, afinal, para que fossem substituídos pela heterodoxia pragmática e desenvolvimentista de Delfim Neto e mais na frente pelo desenvolvimentismo com forte intervenção estatal de Ernesto Geisel.

De fato, a interferência do presidente Jair Bolsonaro na Petrobrás afronta alguns dos princípios da ideologia ultraliberal do seu ministro Paulo Guedes como a autonomia das estatais com ações negociadas nas bolsas e o alheamento do governo da agenda produtiva. Por outro lado, para além da interferência em si mesma, a escolha de um militar não induz uma ruptura propriamente dita como a comparação acima sugeria. Muito embora estejam aliados às mesmas forças conservadoras, religiosas e subalternas aos Estados Unidos do período da ditadura, os militares já não estão mais ligados à tradição do nacional-desenvolvimento com vocação progressista. Como escreveu José Luis Fiori, “as posições verde-oliva não são mais nacionalistas de direita, e sim apenas de direita”.

Um General na Petrobrás (2021) de João Montanaro.

Ao menos desde a ascensão de Getúlio Vargas, os militares protagonizaram a defesa do desenvolvimento industrial como a via necessária para a autonomia, a modernização e a soberania nacional, razão pela qual se distanciaram dos empresários e economistas liberais, aliados de primeira hora no momento do golpe militar, em nome do imperativo de planejamento e execução da industrialização acelerada. Entre 1930 e 1980, portanto, os militares pleitearam e introduziram uma série de reformas institucionais destinadas a conduzir a transformação estrutural da economia brasileira, incluindo a criação de estatais estratégicas — a principal delas, a Petrobrás. O saldo final desse período diz respeito, além da integração do território nacional e a hegemonia na América do Sul, às taxas elevadas de crescimento econômico, industrialização e avanços tecnológicos que corroboravam com as pretensões de soberania e segurança nacional do desenvolvimentismo militar, embora jamais apartadas de seu caráter conservador, autoritário e antipopular expresso na quase nenhuma preocupação com pobreza ou desigualdade social.

É bem verdade que os militares lograram assegurar uma mínima capacidade autônoma de inovação e desenvolvimento industrial ao país, o mesmo não fizeram, no entanto com as formas de financiamento. Em outras palavras: o desenvolvimento do capitalismo brasileiro se deu desvinculado do sistema bancário nacional, o qual permaneceu restrito às funções tradicionais de crédito de curto prazo às empresas e crédito ao consumidor, enquanto os grandes investimentos produtivos permaneciam dependentes do recurso ao capital estrangeiro. Bastou que os juros internacionais aumentassem para que o Brasil mergulhasse na crise da dívida externa cujas consequências — escassez de divisas, déficits fiscais e inflação generalizada — arruinaram a industrialização brasileira, dali em diante incapaz de acompanhar a diferenciação da indústria global rumo a revolução digital.

Os militares saíram desmoralizados e, diante da impressão de má condução da política econômica no passado, assumiram que tampouco saberiam fazê-lo no futuro. “Ator incontornável durante toda a história republicana, a cúpula das Forças Armadas se viu pela primeira vez em cem anos alijada dos centros de decisão política”, comentou o cientista político Marcos Nobre. As escolas militares, por exemplo, concentraram-se em treiná-los para as atividades propriamente militares (armamentos, segurança, fronteiras) em detrimento da administração pública (política, infraestrutura, ciência). Os militares se isolaram na caserna.

O isolamento político se tornou ressentimento à medida que os demais atores políticos defenestravam na esteira da operação da Lava Jato e da crise moral, política e econômica. Enfim decididos a retornar a política, os militares, contudo, já não tinham o conteúdo positivo da sua ideologia e não defendiam mais que uma bricolagem gelatinosa de americanismo, anticomunismo e lavajatismo, além de dor de cotovelo. Nas palavras de Fiori, “a nova geração de militares perdeu a bússola estratégica e econômica do passado, e tem dificuldade de retomá-la e refazê-la em sintonia com o século XXI” — o que fica provado, por exemplo, pelo endosso militar a recente venda da Embraer, que, somada ao esvaziamento do BNDES e o enxugamento dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento, representam a desconstrução do arcabouço institucional que avalizou o desenvolvimento econômico do país ao longo do século XX e com a participação dos próprios militares.

Militarizabus (2021) de Larte.

Por isso, a chegada de Silva e Luna na Petrobrás pode até resultar na alteração da política de preços para suavizar os ciclos internacionais, mas tampouco vai reverter o desmonte desencadeado pela operação Lava Jato e prosseguido pela gestão Castello Branco. Tudo se passa, destarte, como se os militares estivessem convencidos de que somos um país exportador de produtos agroprimários e commodities energéticas, isto é, que a industrialização acabou. Já não enxergam, portanto, razões para que Petrobrás se recoloque como protagonista do desenvolvimento econômico, industrial e tecnológico do país por meio das importantes funções que desempenhou no passado como as prospecções e descobertas a exemplo do Pré-Sal; a instalação de novas refinarias; o investimento em biocombustíveis e renováveis; a política de conteúdo local e compras governamentais.

A recente interferência de Bolsonaro na Petrobrás não resultará em outra coisa senão no acirramento das tensões que o gesto desastrado esperava apaziguar. Os dólares que escoam do país desde ontem vão surtir ainda mais pressão no câmbio e consequentemente no custo da gasolina. A redução do preço do diesel através da recém-anunciada isenção dos tributos federais vai agravar a questão fiscal e, pior, o crescimento da demanda internacional com o fim da pandemia deve recompor o preço. Por fim, a falta de uma agenda de crescimento e o prolongamento da crise vão seguir impossibilitando que os caminhoneiros repassem para preços qualquer aumento dos custos com combustíveis.

Se os militares não parecem incomodados com tamanho caos, é porque o esticamento da corda da ingovernabilidade é proporcional ao aumento da sua ascendência sobre o governo — seja para intermediar as negociações com o Centrão à la Ramos, seja para tapar buracos à la Pazuello, seja para chantagear o judiciário à la Villas Bôas. Em vez de nacionalismo, os militares se prestam a mera, porém brutal, manutenção da ordem. Não restará se não “o general, o almirante e o major (…) contando batalhas em que não estiveram e pugnas valorosas que não pelejaram”, como escreveu Lima Barreto em Triste Fim de Policarpo Quaresma sobre os militares do início do século XX.

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Rodrigo de Abreu Pinto
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Written by Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.

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