Os passos da SEC: para além do full disclousure?
Acompanhar os passos da Securities and Exchange Comission (SEC), a “CVM americana”, tem razões óbvias: como o mercado de capitais dos Estados Unidos é o mais desenvolvido do mundo, não raro as posturas da SEC são interpretadas como o estágio mais evoluído da regulação e logo copiada pelos reguladores ao redor do mundo.
Ao menos é assim desde o Securities Act (1933) e o Security Exchance Act (1934), as reformas capitaneadas pelo presidente Franklin Delano Roosevelt que inspiraram a organização da mercados globais em torno de dois eixos:
(i) a regulação por meio de órgãos federais com atribuições de regulamentar e fiscalizar as atividades do mercado de valores mobiliários; e
(ii) a adoção do modelo de regulação do full disclousure, fundado na obrigatoriedade de divulgação da informação para que os investidores tomem as decisões de investimento, subtraindo o poder do Estado de decidir pelo investidor sobre a qualidade do investimento.
Tais reformas ocorreram na esteira da crise de 1929 e, não à toa, o recente caso da Game Stop aumentou a expectativa para os próximos passos da SEC, inclusive a respeito de mudanças estruturais no funcionamento do mercado de ações para além do full disclousure consagrada há quase 100 anos.
Assim como a crise de 2008 inspirou uma atuação prudencial e sistêmica do regulador em relação às infraestruturas de mercado, criou-se a expectativa de que a SEC estaria prestes a anunciar medidas como exigências ao intermediário em seu papel de gatekeeper, limitações ao número de ações que uma companhia pode ofertar em empréstimo ou mesmo uma intervenção estatal de caráter mais meritório.
A expectativa de transformações se justifica porque o caso Game Stop, a bem verdade, representa apenas um dentre os inúmeros desafios que assombram o regulador norte-americano.
É difícil imaginar uma época em que a SEC tenha se deparado com tantos desafios de uma vez só: acontecimentos disruptivos como Gamestop; ascensão dos criptoativos; expectativa da guinada monetária pelo FED. De outro, massa de investidores atraídos pelas taxas de corretagem zero; instrumentos societários inovadores como as SPACs; agenda ESG turbinada; e, não menos importante, a concorrência com outros meios de financiamento (como fintechs e fundos de private equity) que estão acarretando a diminuição vertiginosa do número de empresas listadas na bolsa americana.

A respeito de temas como os criptoativos, a SEC ainda espera a oportunidade de agir. Como agência reguladora, não pode editar normativas que revoguem, contrariem ou ultrapassem o texto da lei, extendendo indevidamente os seus poderes regulamentares. Assim, embora se diga que o Howey Test continua eficaz para determinar o que é um valor mobiliário, o recém-eleito chair da SEC, Gary Gensler, tem destacado que o Congresso precisa coordenar esforços para construir um marco regulatório estruturado que estabeleça o papel de cada órgão estatal diante da diversificação e funcionalidade desses criptoativos, ao contrário da mera proibição como fizeram as autoridades chineses.
No geral, a verdade é que a SEC se encontra na encruzilhada entre aumentar a proteção dos investidores, muito dos quais estão inseguros após incidentes como a pandemia e o episódio Game Stop; e, por outro lado, flexibilizar as exigências para atrair novos emissores neste momento em que o número de empresas listadas é o mais baixo dos últimos 25 anos.
Para quem esperava alterações drásticas e estruturais, a SEC está dobrando apostado numa regulação baseada quase integralmente no full disclousure como resposta mais adequada aos desafios presentes.
O regulador tem editado medidas para garantir a suficiência das informações divulgadas aos investidores, remediando as assimetrias informacionais em meio ao contexto de operações financeiras cada vez mais complexas e opacas.
Sob o cuidado de proteger os investidores sem impôr custos desproporcionais aos emissores, a SEC aprofunda e aperfeiçoa a lógica de que “sunlight is said to be the best of disinfectants; electric light the most efficient policeman”, como escreveu o ex-juiz da Suprema Corte, Lois D. Brandeis, em artigo de 1914 que inspirou o full disclousure.
Trata-se, em suma, de reformas baseadas na imposição de deveres informativos aos emissores de valores mobiliários e demais participantes desse mercado, sem abrir mão do balanceamento adequado entre a proteção do investidor e os custos e restrições que as medidas adotadas imporão. Vejamos a seguir três exemplos:
1) A eliminação da taxa de corretagem por corretoras como a Robin Hood tem aumentado o número de investidores nas bolsas mesmo perante a queda das empresas listadas.
Embora importante, essa redução da taxa de corretagem está associada a venda de pacotes de ordens pelos intermediários aos market makers, que ganham dinheiro pela diferença entre o preço que compram os pedidos e o preço que realmente os inserem.
Diante das reclamações, por parte de investidores, contra a falta de transparência das taxas e lucros auferidos pelas corretoras, Gary Gensler já anunciou que a SEC está preparando novas regras para informar aos clientes sobre os conflitos de interesse envolvidos, sem erguer exigências às corretoras que inviabilizem a corretagem zero (em especial diante da expectativa de aumento dos juros pelo Fed nos próximos meses).
2) Na virada do ano, as SPACs animaram os investidores pelo modo inovador que facilitam a abertura de capital das companhias. Meses depois, os investidores estão retirando dinheiro das SPACs antes mesmo que seus administradores realizem a aquisição para a qual foram criadas.
A SEC está elaborando novas exigências de divulgação de taxas e potenciais conflitos inerentes às estruturas do SPAC (como a diluição dos acionistas pela entrada de fundos privados e pelo prêmio pago aos administradores após a aquisição) que não estariam suficientemente descritos nos prospectos, sem engendrar obrigações que atentem contra as vantagens e baixos custos dessas empresas.
3) Uma das potencialidades do mercado de ações em relação a outros tipos de investimentos, como as criptomoedas, é a possibilidade de investimentos associados às preocupações com questões ambientais, sociais e de governança, por meio das quais se exige a adoção de certos padrões de conduta pelas empresas investidas.
A SEC recém-lançou uma proposta de alterações no Formulário N-PX, disponibilizado pelos fundos de investimento aos seus clientes, para torná-los mais transparentes quanto aos votos exercidos pelos fundos nas companhias em que investem, incluindo a categorização por assuntos padronizados (direito dos minoritários; governança corporativa; meio-ambiente; diversidade, equidade e inclusão; remuneração de administradores; transações com partes relacionadas) que auxiliem os investidores a monitorar e comparar os respectivos votos. Assim como os fundos deverão incluir informações sobre o volume de suas ações que estão emprestadas a outros agentes, para assim informar aos investidores quando o direito de voto estão sendo trocados pelas receitas com os empréstimos das respectivas ações.