Os recordes da Bovespa dizem menos do que deveriam

Rodrigo de Abreu Pinto
5 min readJun 16, 2021
Estrutura de caixas de fósforo vermelhas (1967) de Lygia Clarck

“Bovespa atinge os 130 mil pontos pela primeira vez na história”, diziam as manchetes da semana passada. Motivos de sobra para comemorar, tanto para quem trabalha no mercado financeiro, mas sobretudo para os brasileiros enfim diante de uma bolsa que ameaça cumprir sua função em relação ao financiamento da atividade produtiva. Só não podemos tomar o êxito como amostra fiel do país, ao menos por enquanto.

Assim como o PIB do primeiro trimestre cresceu acima do esperado (1,2%), o mesmo tem ocorrido com o mercado de ações. A correlação se explica porque o preço de uma ação, antes de tudo, é o valor presente dos lucros esperados no futuro, razão pela qual sua valorização depende que o crescimento econômico eleve as expectativas de lucros. Se a bolsa tem crescido ainda mais que o PIB, é porque estão presentes razões secundárias como a queda da Selic, bem como o otimismo internacional na esteira das vacinas, ambos fatores que impactam o preço dos ativos.

Na ocasião de divulgação do PIB no início do mês, Zeina Latiff afirmou que “a sensação térmica para a sociedade não é a do PIB porque tem uma parte das pessoas que está fora desse crescimento de 1,2% do PIB”. A economista se referia aos trabalhadores informais e subutilizados que não estavam surfando na onda, afinal, o resultado do PIB teria sido puxado por duas forças principais: (i) os ganhos do agronegócio em meio ao boom das commodities e (ii) os investimentos das grandes empresas em informatização. Dois motores importantes do ponto de vista do crescimento econômico, embora limitados na geração de empregos e aumento da renda das famílias. A face oculta do PIB é a maior taxa de desocupados desde o início da série histórica do IBGE em 2012.

Já na Bolsa brasileira, convivem apenas as 400 empresas listadas, das quais 82 compõem o famoso índice Ibovespa. Muitas dessas empresas foram beneficiadas na pandemia já que absorveram a demanda de várias pequenas empresas que fecharam as portas pela dificuldade de custear as adaptações tecnológicas. Outras tantas se aproveitaram da queda dos juros para captarem recursos e destinarem a fusões e aquisições, gerando um processo de concentração empresarial que incluiu operações como Hapvida-Intermédica, Americanas-B2W, Localiza-Unidas, Carrefour-Big, Natura-Avon, Onofre-Drogasil, Magazine Luiza-Netshoes, etc.

Como empresas listadas na Bolsa, as grandes empresas se aproveitam da vocação do mercado de capitais: a formação de capital a baixo custo em favor da atividade de produção de bens e serviços. É ali que os investidores, abrindo mão das aplicações tradicionais nos bancões, estão convertendo suas poupanças em investimento direto na atividade produtiva. Os fundos de investimento e pensão estão aportando os recursos que até então a Selic nas alturas canalizava o rentismo. Acima de tudo, as empresas estão acessando capital para além do tradicional sistema de crédito, formado pelos bancos tradicionais e fortemente marcado pela concentração, a oferta de crédito de curto prazo e os spreads elevados.

Essas vantagens, no entanto, permanecem limitadas ao pequeníssimo número de empresas que acessam o mercado de capitais com facilidade, muito aquém do universo de milhões de pequenas e médias empresas(PMEs) existentes no Brasil. Em Obstáculos ao Financiamento de Pequenas e Médias Empresas por Meio do Mercado de Ações no Brasil, Gabriela Andrade Góes identificou que as barreiras que afastam as PMEs estão relacionadas ao receio de perda de controle da empresa, a desconfiança na entrada de novos sócios, a preocupação de divulgação de informações, a resistência a implementação de práticas de gestão profissionalizada. Contudo, o principal obstáculo ainda são os custos de abertura de capital e de manutenção de uma companhia aberta, ambos demasiados altos para empresas de menor porte.

Inspirado em Bichos (1960) de Lygia Clarck

Originalmente, o mercado de ações fora imaginado quase exclusivamente a capitalização de grandes empresas cuja oferta de produtos exigia escala e complexidade tecnológica. Lamy Filho e Bulhões Pedreira, autores da Lei das SA e da Lei do Mercado de Capitais nos anos setenta, delimitam que o objetivo era “restaurar as condições básicas para o funcionamento da SA e permitir a criação da grande empresa de capital nacional”. Quase cinquenta anos depois, mesmo perante uma massa de investidores que estão formando sua poupança de longo prazo na bolsa, o acesso ao mercado de ações ainda é restrito às grandes empresas em razão da custos desencorajadores ao acesso das PMEs, dentre os quais se incluem os custos de lançamento da oferta (taxas de registro, comissões aos intermediários, honorários advocatícios, auditorias); os custos de manutenção da condição de companhia aberta (obrigações informacionais), além de leis ineficientes como a vedação a adoção do Simples pelas as sociedades anônimas de pequeno porte. Das ofertas realizadas na Bolsa em 2021, apenas 13% buscaram arrecadar valores inferiores a R$ 500 milhões, o que bem demonstra o porte das empresas que estão ali.

Se a grandes façanha do mercado de ações é sua aptidão em “aglutinar pequenos montantes de capital compostos por diversos poupadores em grandes e consolidados montantes”, como escreveu Nelson Eizirik, o desafio é escoa-lo ao maior número de empresas, permitindo que o financiamento da de produção de bens e serviço das PMEs ocorra via mercado de capitais.

Sem isso, as manchetes bradando os recordes da Bovespa serão incapazes de retratar fielmente a realidade do país.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife, é formado em filosofia pela FFLCH-USP e em direito pela PUC-Rio.