PEC do Orçamento de Guerra: e a emissão de moeda?

Rodrigo de Abreu Pinto
6 min readApr 22, 2020

Os próximos dias serão decisivos para a PEC do Orçamento de Guerra. Recém-aprovada pelo Senado, onde o projeto aprovado pela Câmara sofreu alterações, agora só depende de nova sanção dos deputados.

O principal objetivo é estabelecer um regime fiscal especial durante a pandemia. Os gastos emergenciais estarão incluídos numa especie de “orçamento de guerra”, isentos das limitações convencionais, teoricamente tornados mais eficientes contra o avanço do vírus.

Por outro lado, a principal inovação diz respeito a atuação do Banco Central (BC). Para quem se acostumou a ver a autoridade monetária apenas subindo e descendo juros, certamente se surpreenderá com as possibilidades, em termos do raio de ação do BC, nascidas da quebra de paradigmas acarretada pelo vírus.

Indo direto ao ponto: a PEC permite que o BC compre títulos de dívida emitidos por empresas privadas e pelo Tesouro Nacional — nada muito diferente do que fizeram (e estão fazendo) os bancos centrais desde a última crise.

As compras só se darão no mercado secundário, onde os títulos estão em mãos de investidores (bancos, fundos de investimento, etc) e não diretamente das empresas ou do Tesouro, conferindo liquidez ao mercado financeiro — fator decisivo para assegurar o fluxo de novos empréstimos destinados a preservação do capital de giro das empresas.

“Dinheiro Acaba — Money Finishing” (2015) de Paulo Nazareth.

Uma parte da esquerda avaliou a permissão ao BC como uma estratégia renovada de proteção às elites, sob o argumento de que estariam salvado os traders ao reduzir o risco da suas carteiras, enquanto a população em geral segue às minguas. A segunda parte do argumento é verdadeira — de fato, é preciso robustecer as provisões aos mais pobres — o que não contradiz a necessidade de intervir no mercado financeiro, sobretudo porque, em caso de contração do crédito, as empresas recorrerão a demissões em massa e pedidos de falência, dificultando sobremaneira a futura recuperação.

Nos últimos anos, o encolhimento do BNDES, associado aos elevados spreads bancários, foram motivos suficientes para o crescente financiamento das empresas via mercado de capitais, onde os títulos das dívidas corporativas (debêntures, duplicatas, etc) são negociados com as instituições financeiros (fundos de investimento, fintechs, fundos de pensão, bancos, etc)

Em meio a crise, esses investidores resistem a financiar novas dívidas em consequência do receio generalizando quanto a sobrevivência das empresas e o risco de calote — configurando uma crise de liquidez que eleva o custo do empréstimo. Se medo é justificável — é certo que várias empresas terão dificuldades — essas se tornaram incontornáveis caso não obtenham crédito em preços minimamente razoáveis, o que não se dá através do sistema bancário, avesso ao risco.

Por isso, a compra de títulos emitidos pelas empresas, por parte do BC, elimina o risco das carteiras dos investidores e estimula que os mesmos realizem novos financiamentos (sobretudo porque a PEC proibiu que os recursos das vendas ao BC sejam distribuídos em forma de lucros e dividendos). Em paralelo, o BC tem a possibilidade fixar uma taxa de juros mais baixa (como a Selic) para as empresas que emitiram os títulos que estão em suas mãos, dentre as quais as micro, pequenas e médias terão a preferência de acordo com a proposta.

Certamente muita gente deve estar pensando: mas e o custo disso tudo? No momento em que o BC compra o título em posse da instituição financeira, ele não tira o dinheiro do “cofre”, mas simplesmente expande a base monetária e credita o valor na conta da detentora do título.

Mercado de Banana (2011) de Paulo Nazareth.

Para a aquisição de títulos públicos em mãos das instituições financeiras, o processo é parecido.

Sendo que, nesse caso, as ações do BC tem como objetivo não só conferir liquidez ao mercado financeiro, mas também normalizar a taxa de juros sobre os títulos públicos. Sob incertezas, os investidores abandonam os emergentes e privilegiam as dívidas dos países centrais. A consequência não é outra senão que os títulos se desvalorizam e o Tesouro precisa aumentar os juros da dívida para atraí-los novamente. Contra isso, o BC vai às compras para fornecer liquidez aos títulos e segurar os juros, permitindo que esses fiquem compatíveis ao estipulado pela Selic.

Diante dessa operação de compra de títulos públicos em mãos de terceiros pelo Banco Central, surgiu a questão do financiamento monetário da dívida pública — ou seja, se o BC estaria “emitindo moeda” para pagar a dívida pública.

Isso só aconteceria caso o título, comprado pelo BC, não fosse honrado pelo Tesouro, de modo que a autoridade monetária teria creditado um valor na conta do agente privado e nenhum outro dinheiro sairia de circulação, configurando um aumento da quantidade de moeda paralelo a redução da dívida pública — afinal, por mais que o título não tenha sido quitado, não dá para dizer que uma emissão do Tesouro em mãos do BC seja uma dívida propriamente dita.

Para que o Banco Central pudesse fazer isso — comprar títulos públicos para reduzir a dívida — seria preciso revogar o art. 164, 1§ da Constituição que proíbe que o Banco Central financie o Tesouro.

Se fosse o caso, o governo poderia inclusive realizar a compra dos títulos diretamente ao Tesouro, sem passar pelo mercado secundário. Pois, em lugar de adquirir do agente privado, o BC compraria diretamente ao Tesouro, numa operação equivalente ao financiamento monetário não da dívida pública, mas do gasto público propriamente dito. Pois o Tesouro realizaria gasto público sem aumento dívida pública, enquanto o título estaria com o BC e o dinheiro passando de um bolso a outro do próprio Estado.

Aí, sim, seria “emissão de moeda” no sentido mais forte do termo, já que o financiamento do BC não se limitaria a irrigar a economia ao comprar dos antigos detentores dos títulos (caso em que compra títulos públicos para diminuir a dívida do Tesouro), mas garantiria ao governo a gestão do aumento da quantidade de moeda. A lista dos economistas que sugeriram isso vai da direita a esquerda: Henrique Meirelles, André Lara Resende, Eduardo Gianetti, Bresser Pereira, Luiz Gonzaga Beluzzo.

Contra a alternativa, a principal objeção insiste no risco da inflação — uma reação no mínimo esperada pelos nossos desatinos inflacionários em décadas recentes. Esse medo, no entanto, também tem lógica econômica: uma vez que você aumenta a quantidade da moeda, significa que aumenta a oferta e portanto reduz a unidade de valor, gerando a inflação como efeito automático (mais moeda = maiores preços). Assim explica a chamada teoria quantitativa da moeda de Milton Friedman.

Em contrapartida, a chamada Moderna Teoria Monetária, que ganhou importância na esteira da última crise, toma outro referencial monetário que compreende a moeda em sua característica creditícia, em que a mesma não é mais que uma unidade contábil de crédito e débitos entre os agentes (e não uma mercadoria cujo valor se altera com o aumento da oferta.) A guinada inflacionária, portanto, não aconteceria pelo aumento da quantidade de moeda em si, mas somente quando essa fosse de tal maneira que pressionasse a capacidade de oferta da economia como um todo, o que não é risco para uma economia com altos níveis de desemprego e capacidade ociosa.

Por isso, a articulação mais direta entre Tesouro e Banco Central não significaria uma perigosa simbiose, mas uma estratégia de não apenas enfrentar a pandemia, mas aproveitar o contexto da economia brasileira para emitir moeda sem provocar inflação. Se a PEC do Orçamento de Guerra deu um passo importante, falta-lhe ainda o definitivo.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife, é formado em filosofia pela FFLCH-USP e em direito pela PUC-Rio.