A escolha do novo ministro do STF foi terrivelmente política
A nomeação do desembargador Kássio Nunes ao STF é rica em significados. Sem entrar no mérito do magistrado, o método da escolha diz muito sobre o atual momento do governo Bolsonaro. “Não posso negar minha decepção, não pela pessoa indicada, mas pela forma” afirmou a bolsonarista Janaína Paschoal (PSL-SP).
Segundo a Folha de São Paulo, Kássio foi sugerido ao presidente pelos senadores Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e Ciro Nogueira (PP-PI). Em seguida, Bolsonaro jantou com o ministro Gilmar Mendes, o presidente do Senado David Alcolumbre (DEM-AM) e o ministro das Comunicações Fábio Faria que chancelaram o juiz piauiense.
Uma análise quanto ao papel desses cinco nomes no governo é instrutiva. A começar por Gilmar Mendes, o mais político dos ministros do Supremo e prestes a se tornar o decano da corte com a saída de Celso de Mello. A consulta de Bolsonaro a Mendes também atesta que o ministro está prestes a se tornar o novo interlocutor do governo no Supremo, especialmente agora que o “aliado” Dias Toffoli (também presente no jantar) está sendo substituído por Luiz Fux na presidência da corte.
Já Flávio Bolsonaro, o mais político dos filhos do presidente, aproveita que as investigações da ‘rachadinha’ estão em banho maria e assume o lugar de principal conselheiro do pai em lugar dos outros dois filhos. Ao passo que Fábio Faria, político do MDB e novo ministro da Comunicação, consolida-se como articulador do governo em detrimento do bolsonarismo raiz de Filipe Martins, Ernesto Araújo e Abraham Weintraub, antigos porta-vozes do presidente.
A influência do piauíense Ciro Nogueira (PP-PI) atesta, por sua vez, o novo olhar de Bolsonaro ao Nordeste representado pela nomeação de Kássio oito anos após a saída do último nordestino da corte, o sergipano Carlos Ayres Britto. Ao mesmo tempo que a ingerência de Ciro Nogueira também ressalta o PP como o principal partido da base governista, especialmente na Câmara dos Deputados, onde ainda se destacam o deputado Ricardo Barros (PP) como líder do governo e o deputado Arthur Lira (PP) como líder do bloco do Centrão (155 deputados).
Por fim, a presença de David Alcolumbre sinaliza não só que Bolsonaro é simpático a sua manutenção na presidência do Senado, mas também que espera o seu apoio nas votações na casa, justamente onde o governo tem sofrido derrotas importantes (como a derrubada do veto ao aumento de salário dos servidores públicos).
Como chegamos até aqui? Ao longo da pandemia, Bolsonaro bem que tentou forçar uma intervenção militar que só não aconteceu porque as instituições reagiram e os militares recuaram. O presidente então abaixou o tom e recrutou os deputados do Centrão contra um eventual processo de afastamento (mais de 50 pedidos já foram protocolados na Câmara).
É bem verdade que o risco de impeachment, ao menos por ora, desapareceu, mas o pragmatismo do presidente ainda é tão ou mais necessário. Desta vez para a aprovação de políticas que combatam os problemas sociais e econômicos do país, os quais ocuparam de vez o centro da agenda política no lugar de temas como corrupção e costumes. Na pandemia, afinal, não foi a guerra às instituições ou a hidroxicloroquina que segurou a popularidade do presidente, mas os programas emergenciais do governo — o auxílio emergencial, o programa de sustentação de empregos formais e as transferências aos Estados — que estão prestes a cessarem muito embora a pandemia não tenha sido superado (só para ter uma ideia, 38 milhões dos que recebem o auxílio emergencial não são elegíveis ao Bolsa Família e ficarão sem auxílio a partir de janeiro). “Se esperar chegar em 2021 para ver o que vai acontecer, podemos ter problemas sociais gravíssimos no Brasil. Eu estou falando problemas sociais que é uma forma educada para falar distúrbios sociais, que a esquerda pode aproveitara-se disso e incendiar o Brasil”, comentou o próprio Bolsonaro.
É nesse contexto que Bolsonaro está se aproximando do Centrão e do establishment de direita, tal como fez na nomeação de Kássio ao STF, assim como tem ensaiado outros recuos como o retorno ao PSL e o apoio direto a candidatos de direita nas eleições municipais. O X da questão é que as tensões no interior do governo devem crescer já que os recursos (cargos e verbas) são limitados e a ascensão de um grupo induz o rebaixamento do outro, e não é segredo para ninguém que Bolsonaro tem dificuldades de arbitrar entre os grupos. Só nos últimos dias, Paulo Guedes atacou o ministro Rogério Marinho que tem viajado ao lado de Bolsonaro pelo Nordeste. Os evangélicos esperavam a nomeação de um ministro “terrivelmente evangélico” e Silas Malafaia externou a decepção ao chamar o ato de Bolsonaro de “vergonhoso”. A ativista Sarah Winter falou em “traição” e o antropólogo David Nemer contou que “uma coisa que jamais imaginei ler em um dos 75 grupos Bolsonaristas que estudo diariamente: Bolsonaro Comunista! Realmente, a crítica ao Bolsonaro, que não acontecia, vem mto forte perante a nomeação de Nunes p/ o STF.”
Na avaliação do cientista político Marcus Mello, “o sucesso em montar uma base parlamentar poderá levar a déficits de autenticidade e mostrar que ele é apenas mais um membro da política tradicional”, o que afeta especialmente o apoio do bolsonarismo raiz. A compensação viria pela retomada do apoio da classe média que aprova a sua mudança de postura, além dos eleitores de baixa renda e os nordestinos que estão lotando os aeroportos das cidades que o presidente visita. Mas sem nenhum pacto político que revise o Teto de Gastos e garanta a criação de programas que substituam os emergenciais, a capacidade de sobrevivência do presidente será mais testada ao limite.