Pelé

O que li e assisti sobre Pelé sempre me deixou uma impressão intensa, e isso tudo ainda assim me escapa quando tento falar dele no instante de sua morte, quis o destino, no dia de meu aniversário.

Me dou conta de que eu tinha a impressão de que Pelé nunca morreria. Impressão que é tão falsa quanto proporcional a de que ele nunca jogava mau — isto é, de que Pelé não seria um jogador real, como os demais, com dias bons e ruins.

É a prova de que mesmo tendo lido muito sobre futebol e Pelé, não estou imune ao simbolismo do atleta como um mito.

Assim que soube da notícia, passei a empilhar fatos de sua carreira que me marcaram: o recém-campeão do mundo posando como sentinela no quartel do 2º Batalhão de Caçadores em São Vicente (SP), onde Pelé cumpriu o serviço militar aos 18 anos (foi campeão na Suécia aos 17); o “gol de placa” no Maracanã contra o Fluminense de que não restou qualquer registro; o dito de Drummond para quem “mais do que mil gols de Pelé, nada vale um gol de Pelé”; o mundial do Santos contra o Benfica de Eusébio, então proibido de jogar fora de Portugal pelo ditador Salazar; a teoria de Pepe de que é o maior artilheiro da história do Santos pelo fato de que “Pelé não conta”; os juízes expulsos pela torcida na Colômbia para que Pelé voltasse a campo após ter sido expulso; a guerra interrompida na Nigéria porque os nigerianos queriam ver o jogo do Santos de Pelé; a corrida desesperada do goleiro da Tchecoslováquia no quase-gol de Pelé por cobertura na Copa de 70; o comentário de Sérgio Rodrigues sobre o gol perdido contra o Uruguai, após o drible no goleiro Mazurkiewicz sem tocar na bola, de que “Pelé desafiou Deus e perdeu. Imagine se não perdesse. Se não perdesse, nunca mais que a humanidade dormia tranquila”.

Lembrei que o primeiro livro sobre futebol que li grifando os trechos foi O Negro no Futebol Brasileiro, de Mario Filho. O autor narra a história da formação do futebol brasileiro por meio de trajeto que inclui (i) a exclusão dos negros dos clubes brancos e elitistas de Rio e São Paulo na primeira metade do século, (ii) a derrota traumática na final da Copa de 50 em que a falha do goleiro Barbosa engendra episódios de racismo e (iii) a vitória da seleção em 58 capitaneada por Pelé, um negro.

O ponto final, segundo Mário Filho, representa a virada racial em que Pelé consumou socialmente o que a Princesa Isabel fizera apenas juridicamente. Obviamente não vou tão longe quanto autor, pois o livro me marcado não pela conclusão em si, mas sobretudo pelo traço da interpretação em que futebol e vida social brasileira se imbricam, algo que acompanhou várias das minhas reflexões desde então, com Pele sempre na proa.

Recente, a última obra sobre Pelé que vi foi um documentário do Netflix “Pelé”, dos ingleses David Tryhorn e Ben Nicholas. Eles mostram que a conquista do Brasil na Copa de 70 radicaliza o amor-próprio e autoestima dos brasileiros, em especial por causa de Pelé e o alcance planetário da sua fama no momento da passagem para a televisão em cores pela qual milhões de telespectadores, da América e da Europa, presenciaram a aparição do primeiro superastro global do esporte.

Vendo o filme realizo que o presidente Médici realmente tentou galvanizar o regime com a fama do Rei Pelé, como dizem. Só que Pelé era maior que a ditadura e a suposta apropriação em nada se compara aos efeitos da consagração de Pelé em camadas profundas da vida popular brasileira.

São esses efeitos que permanecerão vigendo após a sua morte. Vai em paz.

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Nascido em Recife. Formado em filosofia pela FFLCH-USP. Mora no Rio de Janeiro e estuda direito na PUC-Rio.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife. Formado em filosofia pela FFLCH-USP. Mora no Rio de Janeiro e estuda direito na PUC-Rio.