Poder e Controle nas SA: de Berle e Means até The Big Three (BlackRock, Vanguard e State Street)

Rodrigo de Abreu Pinto
7 min readJan 5, 2022

Em meio empresarial historicamente marcado pela concentração acionária, é natural que a compreensão e descrição do poder nas sociedades anônimas seja definido pela dicotomia entre controladores (com poder) e não controladores (sem poder). Presos a noção formalista de controle, outras formas de exercício do poder são ignoradas pelos estudiosos brasileiros.

As exceções ao menos são do calibre de Fábio Konder Comparato e José Alexandre Tavares Guerreiro, autores de obras clássica sobre o poder em âmbito societário. Nas palavras de Tavares Guerreiro, a doutrina brasileira “ainda caminha pelos cômodos rumos do formalismo, ignorando, às vezes de forma inexplicável, que os conflitos verdadeiros se travam nos bastidores da cena”.

Sem Título (1974)

A configuração histórica do capitalismo norte-americano, por sua vez, expôs os estudiosos dali a estratégias menos ortodoxas de exercício do poder nas companhias. Estratégias que inclusive prescindem do controle propriamente dito.

No clássico The Modern Corporation and Private Property, Adolf Berle e Gardiner Means descreveram a radical transformação que acometeu as companhias americanas entre as décadas de 20 e 30. Com o ingresso massivo de investidores na bolsa de valores após a 1ª Guerra Mundial (1914–1919), a pulverização da concentração acionária das companhias elidiu o domínio dos bancos — em especial o trio de ferro JP Morgan, First National e National City — que então detinham o controle das maiores empresas do país.

A dispersão acionária engendrou a separação entre propriedade e controle, inaugurando um novo paradigma em que o poder de gestão era delegado a indivíduos especializados, os chamados managers. Como explicou Fábio Konder Comparato, “é o controle interno totalmente desligado da titularidade das ações em que se divide o capital social. Dada a extrema dispersão acionária, os administradores assumem o controle empresarial de facto, transformando-se num órgão social que se autoperpetua por cooptação”.

Um segundo ciclo dramático de entrada de investidores no mercado acionário se deu a partir dos anos oitenta. Com o FED estabelecendo um teto para a taxa de juros abaixo da inflação, os americanos trocaram as poupanças bancárias por investimentos.

Por volta de 1982, o nível de participação das famílias no mercado era de 20%; em 2001, alcançaria 50%. A diferença é que, dessa vez, os americanos não compraram ações diretamente, mas priorizaram a aquisição de participações em fundos de investimentos que então se abriam para clientes mainstream por meio da redução dos custos de administração e da taxa de investimento mínimo.

Foi então que investidores institucionais (fundos de investimento, fundos de pensão, bancos, seguradoras) ganharam força inédita, basta notar que a proporção de ações detidas por tais investidores aumentou de cerca de 35% em 1980 para quase 75% em 2005. Em outras palavras: a propriedade corporativa se tornaria intermediada por instituições em vez de detida diretamente pelos indivíduos.

Os fundos de investimento, em particular, saltaram de 8% de participação em 1990 para cerca de 30% em 2008, associado ao fato de que esse percentual estava extremamente concentrado em um número reduzido de assets como Fidelity, American Funds e Vanguard.

Em consequência disso, alguns desses fundos, sobretudo o Fidelity, se tornaria proprietário de posições acionárias relevantes em centenas de companhias americanas ao mesmo tempo. Não se tratava de posições de controle como estamos acostumados no Brasil (> 50%), mas percentuais que variavam entre 5% e 10%, o que já se traduzia em posições de poder consideráveis dado o restante do capital extremamente disperso.

Em paper influente escrito em 2008, Gerald Fredrick Davis afirmou que a concentração de ações nas mãos de poucos fundos acarretaria uma reconcentração do controle corporativo. Estaríamos, portanto, adentrando numa nova fase de concentração acionária que ameaçava a separação entre propriedade e controle identificada originalmente por Berle e Means.

Se não bastasse, o grande achado do artigo de Davis foi a constatação de que, a despeito da propriedade das ações, fundos como o Fidelity não passaram a exercer uma gestão ativa, tal como faziam os bancos no começo do século. Esses fundos, na verdade, compravam ações com expectativa de valorização e as vendiam quando as previsões se alteravam, adotando perspectivas de curto prazo que desaconselhavam o esforço de gerir as empresas investidas. Tratava-se do inédito fenômeno de “concentração acionária sem controle”, como definiu Davis.

Uma nova fase começaria em 2008, mais especificamente desde a crise financeira dos subprimes, quando os chamados “fundos de índice” ou ETFs (exchange traded funds) se tornariam requisitados pelo grande público.

Os ETFs são fundos baseados numa carteira de ações que tão somente replica a carteira e a rentabilidade de determinado índice de referência, abrindo mão da gestão ativa das carteiras enquanto oferece taxas de administração reduzidas aos clientes.

Criados de maneira pioneira pela Vanguard nos anos 70, os ETFs ganharam popularidade após a crise de 2008, a partir da qual os investidores americanos se tornaraim menos tolerantes com as altas taxas cobradas pelos fundos tradicionais. Somado a isso, os programas de expansão monetária beneficiaram uma expansão generalizada do mercado de ações ao longo da última década, reduzindo a diferença de rendimento entre as diversas ações e reforçando a vantagem competitiva dos ETFs em relação aos fundos administrados ativamente.

A exemplo dos mutual funds, a indústria de ETFs é dominada por apenas três assets, BlackRock, Vanguard e State Street, mais conhecidos como The Big Three. Basicamente, são fundos que, no momento da explosão do mercado a partir de 2008, já estavam suficientemente consolidados para atrair clientes mediante os recursos disponíveis para publicidade, além de possuírem um volume financeiro de recursos administradores que conferia segurança aos investidores então temerosos desde a bancarrota do Lemon Brothers.

Como notaram Jan Fichtner, Eelke M. Heemskerk e Javier Garcia-Bernardo em artigo seminal, The Big Three adquiriram participações significativas (entre 5% e 10%) em inúmeras companhias americanas e, por volta de 2017 (ano em que o artigo foi escrito), eram em conjunto o maior acionista em 88% das companhias da S&P 500 (índice composto pelas quinhentas principais ações listadas nas bolsas de NYSE ou NASDAQ). As companhias que não tem The Big Three como principais acionistas são aquelas dominadas por seus criadores ou pessoas físicas, a exemplo da Alphabet (Sergey Brin e Larry Page), Berkshire Hathaway (Warren Buffett), Amazon (Jeff Bezos), Facebook (Mark Zuckerberg) e Walmart ( Família Walton).

Naquilo que importa à nossa investigação sobre o exercício do poder nas sociedades anônimas, deve-se observar que The Big Three detém posições ilíquidas e permanentes, já que os seus respectivos fundos tão somente obedecem a determinado índice. Os gestores de ETFs, em suma, não selecionam as companhias com base em análises fundamentalistas, tampouco podem deixa-las a qualquer momento, pois simplesmente replicam o índice de modo passivo.

À primeira vista, os gestores de ETFs teriam poucos incentivos a se preocupar com o desempenho de governança das companhias, afinal, se o fundo detém as 500 ações da S&P 500, o risco individual de uma ação é pouco relevante. Mais importaria, no caso, que os fundos se concentrassem em manter os custos de administração baixos do que em aprimorar a governança da empresas investidas.

Por outro lado, como os ETFs estão “presos” às companhias, muito embora não tenham maiores interesses de curto ou médio prazo, a criação de valor a longo prazo lhes é sem dúvida importante.

O estudo de Fichtner, Heemskerk e Garcia-Bernardo revelou que tais fundos são investidores passivos, mas não são proprietários passivos, visto que adotam estratégias mais ou menos claras de governança e exercício de poder.

Em primeiro lugar, BlackRock, Vanguard e State Street seguem estratégias centralizadas de governança corporativa. Ou seja, por mais que tenham inúmeros fundos diferentes sob a sua administração (incluindo fundos ativos e passivos), as assets votam de maneira uniforme em cada uma das companhias investidas.

Em segundo lugar, Fichtner, Heemskerk e Garcia-Bernardo identificaram um padrão no comportamento do The Big Three enquanto acionistas. A conduta de BlackRock, Vanguard e State Street nas companhias se traduz no apoio quase irrestrito aos administradores, conformando uma aliança entre os maiores acionistas e os administradores refratária a atuação de investidores ativistas.

Como os administradores sabem que The Big Three estarão permanentemente investidos em suas companhias, é racional que atuem em linha aos seus interesses. BlackRock, Vanguard e State Street, nas palavras de Ana Frazão e Angelo Prata de Carvalho, são “agentes que, por sua própria estrutura, detêm poder financeiro ou outras características que incrementem seu poder de barganha e possibilitem que assumam protagonismo capaz de conduzi-los a verdadeira situação de preponderância no direcionamento dos negócios da sociedade dominada”.

É nesse sentido que a governabilidade do The Big Three ergue barreiras a transformações mais vastas nas companhias. De um lado, os administradores aquiescem pelo poder relevante detido por tais investidores. De outro, investidores como The Big Three se associam aos administradores e viabilizam a obstrução de estratégias contrárias, muitas das quais conduziriam a companhia a rumos diferentes.

Isso, contudo, estaria de acordo com a própria lógica dos fundos que tem pouco ou nenhum interesse na competição feroz entre as empresas, como apontam Fichtner, Heemskerk e Garcia-Bernardo. Dito de outro modo: como investem em um sem-número de empresas em decorrências do ETFs, uma política agressiva de corte de preços, por exemplo, tão logo se revelaria um jogo de soma zero.

Assim, de modo resumido, estamos diante de fundos passivos que não tentam identificar as companhias com melhor desempenho no curto e médio prazo, ao mesmo tempo que adotam estratégias de governança em associação aos administradores que alastram efeitos anticompetitivos no longo prazo. De certo modo, a antítese da imagem do capitalismo americano como liberal, meritocrático e competitivo.

Não se trata de uma minoria que exerce seu poder por meio da participação direta nas assembleias ou por intermédio de direitos diretamente atrelados às participações minoritárias (como o voto múltiplo, a ação de responsabilidade e a convocação de assembleia geral previstas em nossa Lei das S.A. como direitos dos minoritários). Como vimos, o fenômeno de reconcentração das companhias tem resultado em outro fenômeno de dominação societária exercido por acionistas que não são exatamente os controladores.

Em lugar da inexistência do poder de controle (como pareciam crer os autores americanos) ou da simbiose entre poder de controle e controlador (como creem os brasileiros), a análise deve recair sobre o papel da influência e da participação minoritária e passiva de investidores institucionais nas sociedades anônimas.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife, é formado em filosofia pela FFLCH-USP e em direito pela PUC-Rio.