Salvar o capitalismo dos capitalistas

Rodrigo de Abreu Pinto
5 min readSep 1, 2021

Keith Gill construiu uma tese de investimento baseada no potencial da GameStop, famosa varejista de games, sobreviver em meios a hegemonia dos downloads. Sua contrariava a tese de grandes fundos de hedge que apostavam na queda futura do preço das ações.

Tal aposta, denominada de short selling, consistia na seguinte operação: os fundos acordavam uma venda futura de ações baseada no preço atual. Como não entregariam as ações de imediato, sequer precisavam dispôr das ações no momento da operação. Portanto, caso o preço da ação caísse até a data da liquidação, os fundos comprariam as ações mais baratas antes de entregá-las, lucrando com a operação.

Em condições normais, as operações de short selling são legítimas e auxiliam no processo de formação de preços do mercado. No caso da GameStop, os fundos tão só previam que o avanço esgotaria a varejista, tornando racional o short selling.

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Ao chamar atenção para as ações da GameStop, Keith Gill defendeu que os fundos estavam equivocados, afinal, a varejista teria um plano de negócios consistente para sobreviver.

Os internautas concordaram… sendo que, para eles, o erro dos fundos era essencialmente moral: quando apostavam contra as ações da GameStop, os fundos influenciavam as expectativas do mercado e a queda dos valor se tornava uma profecia autorrealizável.

O fato é que, diante de uma operação que não tem nada de essencialmente manipulativo, os investidores interpretaram que os fundos, na verdade, queriam levar as empresas à bancarrota em nomes dos lucros. Foi assim que eloclodiu a chamada Revolta das Sardinhas, há pouco mais de seis meses, em que pequenos investidores se uniram para elevar o valor das ações da GameStop e arrebentar o short selling dos fundos de hedge.

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Os investidores terem assumido uma visão revanchista contra os agentes financeiros, para além do próprio Keith Gill, não deve passar despercebida. Pela primeira vez, ao menos nesta proporção, o mercado foi sacudido por investidores motivados pelo desejo de make a point, inclusive a despeito dos lucros.

Em poucos dias, os pequenos investidores, comumente exaltados pela mídia e analistas financeiros, tornaram-se uma ameaça ao sistema. A Revolta das Sardinhas é, à sua maneira, um desdobramento dos ideais anti-elitistas do Ocuppy Wall Street, ocorrido em 2011 e cuja revolta nascera do empobrecimento, na esteira da crise de 2008, e a impotência democrática das instâncias tradicionais de representação.

A diferença é que as sardinhas descobriram que um ataque aos centros do poder não deve mirar um alvo físico, como os manifestantes ocuparando Wall Street, mas inserir-se nas malhas de uma entidade quase metafísica para boa parte da população, a Bolsa de Valores.

Ambos movimentos espelham revolta contra o “mercado” que já se tornara uma das marcas do século XXI. Basta lembrar que o século no Brasil começou com duas mil pessoas protestando na sede da Bovespa, em setembro de 2000, com tintas e pedras sendo arremessadas na instituição. Dez anos depois, os ocupantes de Wall Street forjaram o lema We are the 99%, enquanto o 1% representava os membros do sistema financeiro, eleitos como adversários comum por manifestantes, tanto de direita quanto de esquerda, revoltados contra uma elite com vistas grossa a pauperização da vida social.

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É óbvio que tal fúria traz, a reboque, uma incompreensão do papel do sistema financeiro na alocação dos recursos da sociedade. Se um segmento como a Bolsa de Valores concentra boa parte da riqueza da sociedade, não é por espoliação, mas porque as empresas descobriram nela um meio eficiente de transformar frações de capital de inúmeros investidores em grandes e consolidados montantes de capital. Ao pé da letra, portanto, o sistema financeiro contribui para a expansão do volume de capital que financia os empreendimentos humanos, representados pela atividade de produção de bens e serviços.

Se o ódio que muitos cultivam os cegam aos benefícios desse sistema, não deixa de ser uma cegueira causada, em grande medida, por circunstâncias objetivas. A letargia dos donos do dinheiro em enfrentar problemas como pobreza, desigualdade e colapso ambiental produz a dramaturgia, inerente ao século XXI, em que os personagens do sistema financeiro “parecem estar contribuindo para resultados econômicos extremamente desiguais, e não para a equalização dos pontos de partida”, como afirmou o professor de economia da Universidade de Chicago Luigi Zingales.

Em livros como Salvar o Capitalismo dos Capitalistas e Capitalismo Para o Povo, Zingales demonstra que o sistema tem drenado seus recursos e astúcia para manipular as regras em benefício próprio, conformando a crescente captura do Estados pelas grandes corporações, trazida à tona em escândalos como o estouro da bolha da internet, os escândalos da Enron e a crise das hipotecas subprime.

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Embora impressione a inteligência política das sardinhas, à medida que põem em xeque o bom funcionamento do mercado, tal modelo de ação é tão efetivo quanto perigoso. Como a Bolsa de Valores depende da confiança, o súbito impacto no preço dos ativos a torna um lugar menos seguros para investir, pois o investidor já não dispõe de meios para tomar suas decisões com consciência, diminuindo a eficácia das aplicações econômicas.

Valendo-me do títulos do livro de Zingales: caso não salvemos o capitalismo dos capitalistas, revoltas sociais vão se multiplicar, numa sequência global, ao longo dos próximos anos.

A desigualdades de rendimentos, consumo e riqueza não produz outra coisa senão insurreições, greves e movimentos, com o adendo que, desta vez, os manifestantes sabem o atalho para mexer diretamente no preço dos ativos.

A revolta das Sardinhas não deve servir apenas para disciplinar a práticas de fundos que por ventura agiam de modo manipulativo, mas para inspirar as empresas a assumirem crescentes demandas sociais em suas práticas, tal como incluídas na agenda ESG. Em lugar de apelar ao Estado, vale notar que as sardinhas enfocaram diretamente as empresas, como se partilhassem da crença de que o fundamento da vida social, e a substância do futuro, está para além da organização estatal.

Já que o povo não aceita mais a letargia e negligência dos agentes do sistema financeiro, resta ver se esses conseguem fazê-lo de outro modo.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife, é formado em filosofia pela FFLCH-USP e em direito pela PUC-Rio.