Startups e Indústrias brasileiras: caminhando de mãos dadas rumo à fronteira tecnológica
O clima anticientífico que dominava o debate público foi, enfim, contraposto aos imperativos éticos e coletivos do combate ao vírus. Pode-se dizer, afinal, que um dos efeitos colaterais da pandemia diz respeito ao ganho de consciência quanto a importância da ciência e das políticas públicas, além do uso da tecnologia na invenção de soluções. Se, mais do que nunca, estamos certo de que não podemos prever o futuro, ao menos nos tornamos mais conscientes de que podemos — e devemos — prepará-lo melhor.
Foi em tal contexto que as startups brasileiras ganharam fôlego inédito em 2020. As startups são empresas que se distanciam das empresas tradicionais pela experimentação, o elevado grau de incerteza e a busca pelo crescimento rápido através criação de produtos ou serviços inovadores que não apenas melhoram a oferta aos clientes, mas também o aumento da produtividade e da eficiência que geram retornos positivos para sociedade. Os anos anteriores já sinalizavam um crescimento contínuo do setor, a exemplo do número de startups no país que triplicou entre 2015 e 2019. Desta vez, a digitalização da economia a reboque da pandemia aumentou o apelo das startups, assim como a queda dos juros e o aumento da liquidez incentivou a diversificação da carteira de ativos dos investidores. As startups brasileiras então receberam investimentos no total de aproximadamente R$ 18 bilhões em 2020, um recorde do setor segundo estudo do Distrito.
Ao longo de 2020, muita gente ouviu falar e usufruiu das chamadas fintechs, como Nubank e Picpay, startups que oferecem serviços financeiros totalmente digitais e permitiram o acesso a serviços bancários, inclusive para o recebimento do auxílio emergencial, para uma fração considerável da população que não tinha acesso aos bancos tradicionais — seja porque mora em cidade sem agência física, seja porque tem nome com cadastro negativo. Também chamaram atenção as govtechs, startups dedicadas a geração de inovação para a gestão pública, a exemplo da Gesuas que criou com software de registro de informações sobre famílias em vulnerabilidade que auxiliou o planejamento e a distribuição de recursos pelos gestores públicos. Outro destaque foram as healthtechs, como a Intensicare e Brasil Telemedicina, que facilitaram o acesso a serviços de telemedicina e ao monitoramento de pacientes à distância.
2021 começou pelo Marco Legal das Startups aprovado com unanimidade no Senado e agora de volta ao Congresso, prestes a ser aprovado em definitivo. O Marco reforma o ambiente de negócios das startups, reforçando a segurança jurídica para os empreendedores e investidores, e aumentar a oferta de capital público pela previsão de licitações exclusivas para os produtos e serviços inovadores das startups. Tudo isso na esteira de outros dois importantes marcos recentes, o Marco Legal da Internet (2014) e o Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação (2016), que também estabelecem a inovação como condição para o desenvolvimento econômico e social do país. Há razões de sobra, portanto, para crer que o ecossistema de inovação está ganhando consistência, e não só do ponto de vista institucional.
As startups brasileiras mais conhecidas — as chamadas unicórnios e avaliadas em mais de U$ 1 bilhão — são justamente as dedicadas a solução de problemas óbvios e comuns, como o Nubank que ganhou tração pelo péssimo serviço e as tarifas caras dos bancos tradicionais; a Quintoandar que ofereceu uma solução inovadora para o problema do fiador nos contratos de aluguel; a Gympass que enxergou a diversidade de interesses dos clientes e passou a vender uma assinatura mensal que permite o acesso a academias, clubes e yogas das cidades. No geral, são problemas singulares, porém poucos diversos ou sofisticados, cuja solução não raro dependem mais da inovação do modelo de negócio do que da criação de uma tecnologia disruptiva. O Brasil, cheio de ineficiências, se revelou um mercado volumoso para essas soluções, o que não inibiu outras startups brasileiras, embora menos conhecidas, avançarem para áreas menos sexy, ao menos à primeira vista, mas que envolvem problemas complexos cuja solução, por sua vez, dependem de tecnologias avançadas (como robôs autônomos, internet das coisas, impressão 3D, computação em nuvem, realidade virtual, big data, inteligência artificial e machine learning) capazes de auxiliar a produtividade, eficiência e segurança de setores produtivos da economia.
Para se ter uma ideia, entre 2017 e 2018, o número de startups B2B (business to business, isto é, que o público-alvo são outras empresas) aumentou 70% e igualou o número de startups B2C (business to client que o público alvo são os consumidores finais). Muitas dessas são as agrotechs, startups que estão aprimorando o agronegócio com tecnologias que usam big data, GPS e drones, por exemplo, para otimizar a irrigação, o uso de pesticidas e fertilizantes e assim garantir um melhor controle da produção agrícola. O boom das agrotechs, por um lado, está diretamente relacionado ao ótimo momento do mercado exportador de produtos primários. Por outro lado, se não é o caso de admitir que a produção de commodities é a única vocação nacional, será decisivo o fortalecimento das startups que trabalham junto ao segmento industrial, por ora um setor menos aquecido do mercado, pois daí pode nascer um impulso importante às indústrias nacionais — em especial quanto a transição dessas para o paradigma da indústria 4.0, caracterizada por métodos de produção e de desenvolvimento de produto mais eficientes, autônomos e customizáveis. Basta pensar Autaza que desenvolveu tecnologias de visão computacional e inteligência artificial, junto ao Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e a General Motors (GM), para identificar ondulações e desvios micrométricos nas carrocerias, vidros e superfícies de automóveis e aeronaves, barateando e otimizando o processo de inspeção de qualidade. Ao contrário do antigo paradigma industrial, baseado em trabalho intensivo, onde a vantagem comparativa dos países em desenvolvimento era o baixo custo da mão de obra que compensava a desvantagem tecnológica, o desafio agora é ganhar produtividade e atrair mão de obra qualificada para assim reinserir o Brasil nas cadeias globais de valor.
Segundo uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI), em 2016 apenas 48% das indústrias brasileiras utilizavam pelo menos uma tecnologia digital. É certo que esse percentual já subiu desde então, em especial durante a pandemia. Não é menos certo, no entanto, que os desafios de adaptação às tendências da indústria 4.0 ainda são enormes. Os principais motivos apontados pela empresa foram as barreiras burocráticas, a falta de informação e o receio de mudanças. Por isso, cabe ao poder público, além de aprimorar a formação de mão de obra qualificada desde o ensino fundamental até as universidades e cursos profissionalizantes, também mobilizar uma estratégia de desenvolvimento industrial que articule uma rede de empresas, startups e centros de pesquisa para, assim, fomentar solução coletiva para produtividade da indústria à medida que cria um cluster e diminui os custos de pesquisa para a identificação de parceiros. Um bom exemplo disso é a startup brasileira Aquarela que recebeu investimento do Fundo Aeroespacial, composto pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, o BNDES e a Embraer, para desenvolver tecnologias de inteligência artificial e data analytics que geram informações preditivas a partir de um grande volume de dados e permitem a integração da indústria com áreas de planejamento, recursos e gestão. Só com o crescimento simultâneo das startups e das indústrias será possível que a economia brasileira ganhe escala e as invenções tecnológicas se traduzam em produção em massa e aumento de emprego.
Se há motivos para comemorar a aprovação do Marco Legal das Startups, o mesmo deve ser tomado como um ponto de partida, e não de chegada. Outros desafios dizem respeito a ampliação do crédito público ao empreendedorismo inovador e uma reforma tributária que alivie a carga sobre o consumo e a produção. Não faz muito que o Brasil foi incluído entre emergentes como a China, a Índia e a Rússia, o que se justificava pela crescimento econômico e a melhora na distribuição de renda que então experimentamos. Se quisermos continuar em companhia de tais países em plena ascensão, é melhor correr atrás dos mesmos que dispararam na frente apoiados, sobretudo, na aposta em setores hightechs que geram maiores retornos de escala, inovação e empregos do que os setores primários. Após vários anúncios de morte prematura, a política industrial está de volta ao centro do debate.