STF na pandemia: a prudência necessária para prevenir o caos
Ministros divergindo do presidente. Legislativo agindo à revelia do Executivo. Prefeitos e governadores violando medidas federais. Estamos em meio a pandemia, mas nem por isso precisava ser assim.
Mais certo é que estamos numa crise médica que abarca uma crise institucional, e vice-versa, indefinidamente. Mal sabemos onde tudo isso vai dar, mas uma boa parte vai parar no STF.
Para se ter uma noção do trabalho que os ministros terão, o Supremo instalou um painel virtual que contabiliza os processos e decisões envolvendo vírus. Já são quase 1000!
O motim institucional — que motiva uma quantidade considerável de processos — é mais ou menos o seguinte: de um lado, o presidente e sua trupe de radicais e filósofos de terceiro escalão; do outro, a inédita coalizão entre parlamentares, governadores e prefeitos, além dos ministros da ala “racional” do governo (Mandetta, Guedes, Moro, Marcos Pontes e Tereza Cristina já contradisseram publicamente o presidente).
Como lembrou Diego Werneck no podcast do Jota, o mais comum sempre foi o STF mediar conflitos em que o Executivo e o Legislativo uniformizavam uma norma a nível nacional e os Estados, sem demora, contestavam a perda de poder no STF.
Se o Planalto geralmente levou a melhor, é porque uma das característica do Supremo é o padrão de deferência à governabilidade do presidente, pelo qual o tribunal evita pôr pedras no caminho do Executivo que emperrariam o presidencialismo (para dar um exemplo prático: a recente decisão do STF que liberou a privatização das subsidiárias sem aval do Congresso).
Mas agora, ao contrário, o Legislativo atua junto aos entes federativos e da própria equipe técnica dos ministérios. Não sem motivos, afinal, é o próprio presidente que enche o caminho de pedras. Como o STF tem reagido?
Deixando de lado, ao menos por enquanto, as disputas que marcaram o começo do ano em torno do “juiz de garantias”, envolvendo ala lava-jatista e a ala garantista do tribunal, os ministros do Supremo passaram a atuar conjuntamente contra os desequilíbrios presidenciais. “É hora de ouvir a Ciência”, conclamou o ministro Fux, reforçando o papel do STF de preservar os valores constitucionais contra os excessos cometidos por eventuais maiorias eleitorais.
Nas últimas semanas, os ministros do Supremo encurtaram a caneta presidencial em diversas liminares que proibiram, por exemplo, a veiculação da propaganda “O Brasil não pode parar” e a desativação da Lei de Acesso à Informação. O ministro Marcos Aurélio garantiu a competência dos Estados e Municípios para editar medidas de saúde contra o coronavírus. O ministro Lewandowski suspendeu a MP da suspensão de contratos para sinalizar que os sindicatos não podem ser excluídos das negociações individuais. Essas duas últimas decisões serão julgadas pelo plenário no próximo dia quinze, nessa que será a primeira sessão virtual da história da corte.
A presidência de Jair Bolsonaro, desde o início, representou o maior desafio da história do Supremo após o fim da ditadura: trata-se alguém que vitupera contra todas as garantias e conquistas da Constituição de 88. Durante o seu primeiro ano de governo, as atitudes do presidente do tribunal, Dias Toffoli, de anuir o “pacto entre os poderes” e elogiar as reformas em curso tenham deixado a má impressão que o STF teria se aproximado indevidamente do presidente. Contudo, de modo geral, a corte tem cumprido um importante papel em frear as vocações autocráticas do presidente. Digo isso apoiado em decisões como a criminalização da homofobia, a garantia da liberdade de expressão nas universidades, a prisão somente após o trânsito em julgado, a proibição da liberação das armas via decreto.
Embora acertado, o perigo é que a atuação do Supremo, à medida que atrai os holofotes, deslize para um voluntarismo salvacionista que ultrapassa as missões do tribunal. Empurrado pelas excepcionalidades da COVID-19, em lugar de mediador de conflitos, o STF ensaia agir como agente promotor das soluções institucionais — ou, na feliz expressão de Maria Cristina Fernandes, como resolvedor geral da república.
Há de se questionar, por exemplo, as recentes reuniões dos ministros em que chefes de poderes, governadores e prefeitos “consultam” o STF. Chamo atenção para a atuação do presidente Dias Toffoli na elaboração de projeto de lei junto ao senador Anatasia (PL 1179/20) a respeito da flexibilização de contratos entre particulares durante a pandemia. Se, por um lado, é elogiável a intenção de prescrever ações que, sem alterar as vigentes, edita normas temporárias em nome da segurança jurídica. Por outro, é indevido que um ministro participe da elaboração de uma lei que pode ser alvo de ações que obriguem o julgamento no Supremo. Caso isso aconteça, o ministro Toffoli será declarado impedido de julgar?
Em outro caso, o ministro Alexandre de Moraes atendeu ao pedido do Planalto e suspendeu artigos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O estado de calamidade pública, aprovado pelo Congresso, já previa o afastamento de várias exigências da LRF. O Executivo, no entanto, foi pedir ainda mais, sob a justificativa que as exceções previstas eram insuficientes. Novamente: se é louvável que o Judiciário se mostre preocupado em ampliar a margem de manobra do governo, nada justifica que o Supremo — e não o Congresso — legisle quais serão as normas excetuadas para além das previstas originalmente.
O depósito de esperanças no Supremo é o motor que descaracteriza o tribunal como árbitro dos conflitos, para então torná-lo um órgão consultor e até condutor da política nacional — com o agravante de que muitas vezes o martelo é batido monocraticamente. O STF é uma peça relevante mas não pode ser o protagonista, se não enquanto último guardião da constituição, sob o ônus de acarretar desequilíbrio entre os poderes e alastrar, ainda mais, o caos institucional.