Todo governador é um presidente em potencial

Rodrigo de Abreu Pinto
7 min readAug 7, 2019

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Quando o governo completou 100 dias, diante da relevância assumida pelos parlamentares, afirmei que não existe vácuo no poder para dizer como o presidente fraco engendrou o Congresso forte (ver artigo aqui). Com pouco mais de 200 dias, o protagonismo de diversos governadores requer que ampliemos a sentença. Afinal, o déficit de legitimidade de Bolsonaro também reforça o papel das autoridades estaduais — seja pela mídia tentada a encontrar contrapontos às declarações do presidente, seja pela população também ávida por novas lideranças.

Não surpreende que quatro deles já despontem como possíveis candidatos em 2022.

Wilson Witzel (PSC-RJ) e João Dória (PSDB-SP) sufragaram a eleição de Bolsonaro e, seis meses depois, já querem certa distância. O governador do Rio reluta em apoiar o candidato a prefeito do PSL, Rodrigo Amorim, que não tardou em avisar que “se o governador optar por não caminhar com o PSL no ano que vem, selará uma ruptura com o bolsonarismo e com o campo conservador”. Enquanto João Dória, quem por ora dispara como favorito para 2022, criticou as recentes bravatas do presidente e disfarçou que “nunca tivemos alinhamento com o governo Bolsonaro”. Se depender dos movimentos recentes, o paulista entendeu que precisa ser menos centrista que o ex-candidato tucano (Geraldo Alckmin), mas ainda assim nem tão extremista como o presidente.

João Dória durante as eleições ao governo de São Paulo.

Já os outros dois, Flávio Dino (PC do B-MA) e Rui Costa (PT-BA), ganham força ao rebentar do lado oposto, ambos alçados a mártires pelos insultos do presidente ao Nordeste. O maranhense aproveitou para responder que “a cabeça dele é movida pelo confronto, e o coração, infelizmente, está possuído de ódio”. Já Rui Costa não participou da entrega do aeroporto de Vitória da Conquista, ao lado de Bolsonaro, justificando que o evento não seria aberto a população. Em ambos os casos, a questão é se posicionar como uma alternativa da esquerda na medida em que o ex-presidente Lula continua preso e Fernando Haddad não é consenso nem no próprio partido.

A guisa antagonista de Bolsonaro, ao aferrar todos ao redor como inimigos, não raro aproxima seus oponentes, o que tem gerado uma coalizão informal entre governadores e os parlamentares. Por um lado, o presidente exclama que “se os governadores quiserem que realmente isso tudo seja atendido, eles vão ter que falar que estão trabalhando com o presidente Jair Bolsonaro”. Em outras palavras: aos aliados, tudo; aos adversários, restos, mesmo que também tenham sido eleitos pelo povo. Diante da resistência inicial dos governadores do Nordeste a nova Previdência, o presidente não teceu esforços pela inclusão dos Estados na reforma. É assim que caberá aos governadores o ônus e a impopularidade da reforma, sem a qual os investimentos públicos permanecerão represados pelos limites fiscais.

Rodrigo Maia e os governadores do Nordeste.

Por outro lado, Rodrigo Maia lidera o movimento contrário em apoio aos Estados. Tanto pelo compromisso com vários governadores e partidos (incluindo o PC do B e parte do PT) que apoiaram sua eleição na presidência da Câmara, quanto pelo possível cargo de vice na chapa de Dória em 2022. Basta olhar para os trâmites do Congresso que chama atenção a quantidade de propostas em socorro aos Estados em curso, incluindo a securitização das dívidas dos Estado, o plano Mansueto de recuperação fiscal e o bônus de assinatura da cessão onerosa do pré-sal. Todos projetos que garantem recursos aos Estados e recuperam raio de ação aos governadores.

Olhando assim, o que sobressai do atual momento da política é que presidente fraco induz Congresso e governadores fortes. A verdadeira medida dessa força, no entanto, somente as próximas eleições dirão.

A Nova República entre presidentes e governadores

A hipótese do próximo presidente provir do governo estadual, caso se confirme, atualizaria uma história que encontrou liame em Fernando Collor, o último presidente eleito na esteira do controle do Estado. Antes do alagoano, os primeiros presidentes da Nova República também eram ex-governadores: Tancredo Neves de Minas Gerais (1983–84) e José Sarney do Maranhão (1966–70). Se o momento áureo dos governantes chegou ao fim, é porque o processo de redemocratização, uma vez completo, liquidou as condições que ensejou o modelo.

De modo geral, o processo durou da anistia em 1979, momento em vários políticos retornaram ao país, até o Plano Real que elegeria FHC em 1994. Para que os governadores largassem com mais força, foi decisivo que a primeira eleição da redemocratização, levada a cabo em 1982, envolvesse apenas os Estados e não a presidência. Dali, saíram governadores que deixariam suas digitais em todo o processo posterior como Leonel Brizola (RJ), Franco Montoro (SP) e Roberto Magalhães (PE), além do próprio Tancredo Neves (MG).

Leonel Brizola de volta do exílio ao Brasil em 1979.

Quando, finalmente, o último presidente militar deixou o cargo em 85, o posto máximo da República foi capengado, primeiro, pelo bloqueio das eleições diretas que borrou a legitimidade do presidente. Segundo, a morte de Tancredo alavancou um progênito da ditadura, José Sarney, desde o início tutelado pelos deputados do Centrão, o que minou seu protagonismo e abriu espaço aos governadores. Inclusive aqueles que seriam eleitos no ano seguinte, caso de Miguel Arraes (PE), Orestes Quércia (SP), Pedro Simon (RS), Tasso Jereissati (CE) e também Fernando Collor (SP).

Em 1994, quando a inflação ainda era a principal questão do país, o sucesso do Plano Real catapultou a popularidade do ministro da Fazenda, FHC, a ponto de sufragar a candidatura dos outros nomes fortes do seu partido, os governadores Tasso Jereissati e Franco Montoro. Durante a disputa, o tucano venceu os proeminentes Leonel Brizola e Orestes Quércia, também ex-governadores. Enquanto o segundo lugar coube a Lula, jamais liderança de nenhum Estado como FHC, o que já sinalizava como seria a política brasileira dali para frente: mais polarizada pelos governadores e sim pelos partidos, vertebrada entre PSDB e PT juntos aos seus respectivos líderes.

FHC( presidente do Brasil) e Michel Temer (presidente da Câmara).

O governo FHC, em nome de ajustar as contas públicas, pregaria exigências fiscais que rebaixariam de vez a posição dos governadores. Para sanar a crise da dívida dos Estados, detonada quando Itamar Franco, então governador de Minas Gerais, declarou a moratória do seu Estado, o presidente submeteu as dívidas estaduais a penosos processos de renegociação (e em seguida a Lei de Responsabilidade Fiscal). Não sem antes extinguir os bancos estaduais que dificultavam o controle das finanças, além de incentivar a privatização de várias empresas estatais, muitas das quais ineficientes, que garantiam cabedais de empregos à disposição dos governantes. Uma vez desposados dos recursos, os caciques estaduais perderam espaço aos deputados federais, os quais, arvorados e dando sustentação ao presidente no Congresso, conquistaram capital político para dominar os partidos. Tal como ilustra a ascensão dos parlamentares do PMDB (Michel Temer, Geddel Vieira, Eliseu Padilha, Henrique Eduardo Alves) que passaram a liderar a cúpula do partido.

Em paralelo a isso, as novidades de FHC também alteraram o equilíbrio federalista ao reforçar as prerrogativas da União sobre os Estados. Para isso, deu-se a nacionalização da política social, em que se incluem os programas redistributivos, e a concentração nos cofres da União dos recursos das privatizações, concessões e, não menos importante, do aumento dos impostos, agora centralizados no Executivo. FHC criou o mecanismo da DRU (Desvinculação de Receitas da União) que permitiu à União gastar livremente parte de sua arrecadação; e o CPMF (Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira) que também sedimentou os custeios da União. Foi assim que os instrumentos fiscais foram centralizados no governo federal, que então adquiriu a primazia na condução da política econômica. Aos governadores, portanto, restou-lhes o pires na mão para demandar recursos à União enquanto os presidentes, daí em diante, administram as liberações orçamentárias na boca do caixa e monopolizam o presidencialismo brasileiro.

Lula nas obras da transposição do Rio São Francisco: água aos aliados, seca aos oponentes.

Embora FHC tenha conquistado a reeleição, seu domínio só não foi maior porque os recursos, acumulados na União, foram consumidos pelo ajuste fiscal e as sucessivas crises, o que privou o Executivo da autonomia que lhe seria conferida nos anos de crescimento acelerado do PT. Dali em diante, o PT se valeu dos recursos excedentes para liberar seletivamente e pressionar os governos e prefeituras que não integravam a coalizão multipartidária, o que acarretou o progressivo declínio dos partidos da oposição (claro, somado ao êxito mais geral da política econômica de Lula). Basta ver o DEM, antigo PFL, que possuía 4 governadores e 1027 prefeituras em 2002, e ficou sem nenhum governo e apenas 266 prefeituras em 2014.

Acabado o grande momento petista, quando ganhou quatro eleições presidenciais consecutivas, a erosão de Dilma induziria o desgaste da presidência da República, tornada ainda mais intensa na sequência dos presidentes seguintes. Ou seja, começou na corrupção da Lava Jato (em boa parte localizada no Executivo) e na consequente vulnerabilidade de Dilma. Pegou carona na impopularidade de Michel Temer. E agora é a impressão generalizada de que Bolsonaro não nasceu para presidente que, em ritmo acelerado, alimenta a deterioração da centralidade política da presidência.

Já na última eleição, dois candidatos (Ciro Gomes e Geraldo Alckmin) insistiram em seus currículos como governadores para contrastar a experiência malfadada de Dilma e Temer. Caso Bolsonaro fracasse, uma das explicações será a sua falta de experiência no Executivo, já que construiu a carreira política como deputado federal do baixo clero. De modo contrário, os virtuais candidatos e governadores (Dória, Witzel, Dino e Rui Costa, além de Ciro Gomes) responderão com a moeda da prática, sobretudo se completarem uma boa gestão nos respectivos Estados. Se Bolsonaro, desde já, ameaça os governadores, é porque tem em mente essa tendência. Ele pode ser mal presidente mas não é burro, o que inclusive já é muita coisa.

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Rodrigo de Abreu Pinto
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Written by Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.

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