Um juiz só faz verão: os indicados de Bolsonaro ao Supremo
Em 2015, o Congresso aprovou a chamada Pec da Bengala que elevou de 70 para 75 a idade para a aposentadoria compulsória dos ministros do Supremo. O objetivo não era outro senão evitar que a então presidente Dilma escolhesse os substitutos dos ministros Celso de Mello e Marco Aurélio prestes a se aposentarem.
Se é certo que o golpe parlamentar de 2016 pariu a eleição de Jair Bolsonaro, quis o destino que as duas indicações caíssem no colo desse — pela regra anterior, nenhum ministro se aposentadoria durante seu mandato.
O presidente adorou a conveniência e desde os primeiros dias se vale da rifagem das duas vagas no tribunal. Ainda na montagem da equipe ministerial, valeu-se da popularidade de Moro ao trazê-lo para o governo não sem antes prometê-lo “a primeira vaga que tiver”. Após as crises e sucessivas quedas de popularidade, Bolsonaro tentou fidelizar os evangélicos — críticos aos avanços de pautas no Supremo como a criminalização da homofobia — ao cogitar a nomeação de alguém “terrivelmente evangélico”.
Mais recentemente, o presidente afirmou que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, seria um bom nome, logo após o mesmo protegê-lo no Inquérito da Fake News, sugerindo a disposição de indicar alguém com habilidade para blindá-lo. Não por outra razão, o último cotado foi João Otávio de Noronha, ministro do STJ que liberou o presidente de apresentar os testes da COVID e concedeu a prisão domiciliar para Fabrício Queiroz, a respeito de quem o presidente já confessou que sentiu “amor à primeira vista” ao vê-lo discursando meses atrás.
Olhando assim, dos acenos populistas a base aliada até a recente necessidade de blindagem, a nomeação dos novos ministros do STF ganhou importância ao longo dos últimos meses.
Antes, a falta de ministros bolsonaristas era até uma vantagem para Bolsonaro ao passo que reforçava o mito do presidente tutelado e refém das instituições corruptas. A pandemia lhe pareceu a brecha perfeita para a ruptura institucional, não à toa que tentou ao máximo acirrar o caos que forçaria as Forças Armadas a interferirem — seja participando de manifestações golpistas, seja declarando guerra institucional contra os governadores e prefeitos. Se a ruptura, afinal, não aconteceu, foi só porque os militares recuaram no mesmo compasso que as instituições protagonizaram uma inesperada reação republicana.
Agora, as indicações ao Supremo importam não apenas pela blindagem contra as investigações em curso — em especial o inquérito das Fake News — mas também porque os novos ministros serão decisivos para a continuação do projeto autoritário de Bolsonaro. Embora tenha recuado e abandonado o modo hard, Bolsonaro perdeu a batalha, mas não a guerra. Numa postagem recente, o major Vitor Hugo, bolsonarista raiz e líder do governo na Câmara, afirmou:
Ora, quem chama as prerrogativas presidenciais de “armas da democracia” sabe bem que qualquer sistema democrático possui brechas e pontos cegos que permitem enfraquecê-lo por dentro mesmo da legalidade. No já clássico Como as Democracias Morrem, os americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt exploram justamente isso: como as democracias são violadas por dentro das suas próprias malhas institucionais, isto é, sem aplicação de golpe de fora para dentro. Para isso, os autocratas modernos possuem a virtude da “paciência” — tal como indicado pelo major Vitor Hugo — já que destroem a democracia lentamente e sem nenhuma ruptura propriamente dita, mas com uma violação aqui, outra ali.
É mais ou menos o que Bolsonaro tem feito quando vai aparelhando os órgãos subordinados ao Executivo (Receita Federal, Ibama, Anvisa, Ancine, etc), mas o saudosismo da ditadura militar — e de golpes como antigamente — impediram que o presidente se concentrasse na empreitada com paciência necessária, ao menos até então.
Se esse for o caso agora, os futuros nomeados ao Supremo serão mesmo fundamentais, afinal, serão ministros sujeitos a exíguo controle ao mesmo tempo que operadores de instrumentos abertos ao uso oportunístico — mesmo que aja individualmente. Segundo o profº. Conrado Hubner Mendes, os ministros individuais detém hiper-poderes porque podem atuar na base do que chamou de obstruções — tanto passiva, quanto ativa.
A obstrução passiva envolve os chamados “pedidos de vista” pelos quais um ministro, sozinho, obstrui um julgamento e adia uma decisão judicial indefinidamente. Num caso notório, o ministro Gilmar Mendes pediu vista aos 45 do 2º tempo e livrou a proibição do financiamento de campanha por empresas privadas na eleição de 2014. Não é difícil imaginar, por exemplo, um futuro ministro freando discussões como a descriminalização das drogas e a legalização do aborto.
Já a obstrução ativa diz respeito a maior patologia institucional do STF: as liminares monocráticas, pelas quais o ministro-relator evoca a suposta “urgência” da decisão e exerce a competência de julgar o mérito sozinho. A liminar prevalece até que o caso seja revisado pelo colegiado, o que não raro acarreta um tempo indefinido — seja pelo acúmulo de processos a ser julgados, seja pelo boicote do ministro-relator que não envia o caso ao plenário — e é muito comum que o intervalo entre a decisão monocrática e o julgamento no plenário tornar os efeitos da decisão irreversíveis.
Semanas atrás, o sorteio da ADI sobre o art. 142 da Constituição — a respeito do qual Bolsonaro e o jurista Ives Gandra advogavam uma interpretação golpista — caiu nas mãos do ministro-relator Luís Fux, que desautorizou a intervenção das Forças Armadas sobre o Legislativo, o Judiciário e o Executivo. A título de hipótese: já imaginaram se o sorteio dá a relatoria do caso nas mãos de um ministro bolsonarista? Seria suficiente que os demais tentassem se reunir às pressas para reverter a decisão?
É bom lembrar que o STF só foi capaz de frear os avanços autoritários de Bolsonaro porque os ministros, enfim, deixaram as rusgas de lado e recuperaram a credibilidade na interpretação da Constituição por meio de decisões sólidas, e sob ampla maioria. O terraplanismo constitucional dos prováveis indicados por Bolsonaro, por sua vez, arriscam pôr em xeque tal estabilidade recém-adquirida. Assim como já interferiu na Polícia Federal e PGR, Bolsonaro não vê a hora de fazer o mesmo no Supremo.