Um ponto cego no revisionismo lulista

Rodrigo de Abreu Pinto
5 min readJun 12, 2023

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O direito de voto em uma sociedade anônima é o direito do acionista de manifestar sua vontade nas assembleias de acordo com a quantidade de ações detidas.

Trata-se de direito com significado especial pois equivale ao poder de influir nos negócios da companhia, porém a Lei das S.A. admite restrições. Melhor exemplo são as ações preferenciais sem direito de voto.

Outro exemplo é a permissão de que o estatuto da sociedade estabeleça uma limitação ao número de votos de cada acionista. Pode-se incluir uma cláusula que limita o poder de voto a determinado percentual do capital social independente da quantidade de ações ordinárias detidas pelo respectivo acionista. É uma cláusula comum em operações cujos envolvidos estão interessados na desconcentração política e pulverização do capital social da companhia.

Metaesquema 059 (1957) de Helio Oiticica

Ainda no governo Bolsonaro, a Eletrobrás foi privatizada por meio de uma operação de emissão de mais de R$ 30 bilhões de novas ações que capitalizou a companhia e diluiu a participação da União, de cerca de 70% para quase 40% das ações com direito de voto. A contrapartida oferecida pela Eletrobrás para atrair os investidores foi a alteração no estatuto que limitou o poder de voto de qualquer acionista a 10% do capital social, incluindo a União.

O governo Lula, por meio da AGU, recém-ajuizou uma ADI para afastar o dispositivo que limita o seu poder político na Eletrobrás.

É justo que um governo discorde de políticas realizadas pelo governo anterior. Um governo tem até mesmo o direito de propor medidas ao Congresso para desfazer reformas implementadas — desde que, é claro, apoiado em uma lógica econômica clara e com respeito aos contratos e obrigações do país.

Não é o caso da medida proposta contra o modelo de privatização da Eletrobrás. A ADI recorre a princípios de modo frouxo e pouco inteligível. Fala em “proporcionalidade” e “razoabilidade” para concluir que “não há razão publicamente justificável para o Estado abrir mão, unilateralmente, dos poderes inerentes às suas ações ordinárias, limitando sua atuação de modo absolutamente desproporcional ao patrimônio público investido”.

Foi justamente contra o uso capenga dos princípios que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) foi reformada em 2018. O art. 20 da LINDB passou a constar expressamente que “[n]as esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”.

Seja quando o Executivo ameaça não cumprir contratos que celebrou, seja quando o Judiciário interpreta com base em princípios em detrimento da realidade. A consequência é a insegurança jurídica dos negócios realizados no país.

Sabe-se que milhares de investidores (incluindo trabalhadores via FGTS) adquiriram os mais de R$ 30 bilhões de ações da Eletrobrás. A atividade econômica da companhia pode frustrar e o preço das ações caírem — esse é o risco dos investidores. Mas as coisas podem dar certo e as ações subirem — esse é o resultado esperado. O que não pode ocorrer é que um fato estranho à atividade econômica afete o desempenho da Eletrobrás e de suas ações — essa é a insegurança jurídica.

Exemplos de políticas que causam insegurança jurídica são variados: políticas discricionárias (como a desoneração tributária de setores ou de bens selecionados) em lugar de políticas horizontais; controle de preços como mecanismo para conter a inflação; intervenção em setores específicos para baixar as tarifas na marra; e alteração inesperada de normas e contratos que ignora a expectativa de que seriam aplicadas de forma consistente e imparcial ao longo do tempo.

O governo Lula ilustra inúmeros casos assim. Fala-se em desfazer as reformas dos últimos anos e não só da Eletrobrás. A lista inclui Lei das Estatais, Reforma Trabalhista, Reforma da Previdência, política de preços da Petrobrás, regime de metas de inflação, Marco do Saneamento Básico, Independência do Banco Central.

O PT pode e até deve desconfiar do que os governos anteriores (Temer e Bolsonaro) fizeram. O partido sofreu impeachment, perseguição da Lava Jato e ascensão de uma extrema-direita que prometia lhe varrer do mapa. Tudo partes de um mesmo processo que teve como fio-da-meada o antipetismo e cuja polarização produziu, como outro lado da mesma moeda, o reforço da identidade da esquerda e a desconfiança de tudo que viesse do lado de lá.

Só que o PIB tem reagido bem e mais do que isso: o resultado do 1º semestre foi muito além da expectativa dos economistas — basta ver o equívoco das previsões do Boletim Focus. Os analistas destacaram a excelente safra agrícola e o aumento das transferências sociais como determinantes para o resultado. Só que o erro de previsão dos economistas talvez indique mais do que isso, em especial porque os equívocos se repetem ao menos desde 2021.

Mário Mesquita, economista chefe do Itaú, resumiu assim: “as surpresas podem refletir o efeito defasado e cumulativo de reformas implementadas desde 2016. E completou justificando: “Se nós economistas divergimos sobre os lags da política monetária, temos menos informação ainda sobre a defasagem entre a aprovação e implementação de uma reforma e seu impacto na taxa de crescimento da economia”.

Fato é que o Brasil aprovou reformas importantes em resposta à crise de 2014–2016, a começar pelo próprio governo Dilma que já preparava um teto de gastos e uma reforma da previdência quando sofreu o golpe parlamentar. Outras reformas implementadas na esteira da crise foram a Lei das Estatais, a TLP (em lugar da TJLP no BNDES), a reforma da Lei de Falências, os marcos regulatórios de setores como saneamento, gás natural e distribuição de energia, a Lei de Liberdade Econômica, o Marco Legal das Startups, a Lei do Ambiente de Negócios, a nova Lei de Licitações, a autonomia do Banco do Central. E a própria reforma na LINDB que comentei acima.

Essas reformas podem ter aumentado o potencial de crescimento da economia brasileira, o que explicaria os seguidos erros dos economistas. Essa hipótese será confirmada só quando os choques, os estímulos injetados e os riscos macroeconômicos chacoalharem menos o ambiente. Mas o governo Lula deve, desde já, refletir sobre os riscos de que a estratégia revisionista gere o aumento da insegurança jurídica, bem como a reversão de reformas cujos efeitos só agora começam a aparecer.

O arcabouço fiscal é um ótimo exemplo do que pode ser feito: aprimorar, sem necessariamente negar, as reformas feitas. Assim sobra capital político para que o governo se dedique às reformas que só cabem a ele porque ninguém até então as fez: transição verde, reforma tributária e abertura comercial. Nem tudo que é sólido precisa se desmanchar no ar.

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Rodrigo de Abreu Pinto
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Written by Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.

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