Vão-se os presidentes, ficam os militares
A pesquisa do Datafolha divulgada no começo do mês identificou que 52% dos brasileiros desaprovam a presença de militares no governo contra 43% favoráveis. Um ano atrás, o mesmo Datafolha verificou o inverso: apenas 36% eram contrários, enquanto a larga maioria de 60% dos entrevistados apoiavam os fardados no poder político.
Nesse mesmo tempo, o número de militares cedidos ao governo cresceu 43% do ano passado e já são 2.897 militares da ativa (sem contabilizar os da reserva).
Uma outra pesquisa do Instituto da Democracia identificou a corrosão das Forças Armadas no que diz respeito ao apoio a golpes militares. Em caso de corrupção generalizada, por exemplo, 48% dos brasileiros em 2018 diziam que o golpe era justificado, e agora esse número caiu para apenas 29%.
É cedo para falar em colapso da confiança sobretudo porque, comparada às demais instituições, as Forças Armadas ainda gozam de prestígio sem igual. Por outro lado, está claro que a instituição está perdendo apelo: já passou o tempo em que os militares eram vistos como a “ala racional do governo” inconfundível ao chefe.
Em entrevista recente para a BBC, o historiador José Murilo de Carvalho, autor do mais famoso estudo sobre as Forças Armadas, afirmou: “A posição dos militares no governo está se tornando cada vez mais desconfortável, porque o fracasso do governo com a presença de vários generais se reflete na imagem das Forças Armadas”.
Num processo que começou no governo Temer até o apogeu com Bolsonaro, os militares voltaram ao poder depois do interregno pós-ditadura em que, pela primeira vez em mais de cem anos de história, estiveram alijados do âmago do poder. Agora que as manifestações contra o presidente tomam as ruas do país, o que farão os militares? A opinião do mesmo José Murilo de Carvalho é que “não creio que a corporação militar esteja disposta a pôr em perigo sua reputação entre a população para defender um presidente que não está à altura do cargo”.
Para entender a inação dos militares, deve-se partir da constatação de que os militares, de fato, são bolsonaristas no que diz respeito aos valores (o aparelho ideológico dos idos da ditadura jamais foi desmontado), embora não como Bolsonaro quanto aos métodos desfuncionais.
Sempre que tentaram corrigi-lo, no entanto, as milícias virtuais gritaram mais alto, basta lembrar dos ataques orquestrados por Olavo de Carvalho que acarretaram a demissão do general Santos Cruz. Esse, para quem não se lembra, saiu dizendo que tudo não passa de uma “fofocagem desgraçada”.
Mas os militares, decerto, não têm medo de fofocas. Se recuavam, é porque uma das principais funções do chamado Gabinete do Ódio, chefiado pelo filho Carlos Bolsonaro, consiste em espalhar fake news e agitar as bases militares para que forcem o alto oficialato à mesma radicalização — tal como ocorreu no tweet do general Villas Boas, às vésperas do julgamento de Lula, em que o comandante admitiu que “a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse”. O melhor exemplo de insubordinação das polícias e politização dos quartéis foi o recente motim dos policiais militares do Ceará, o qual “provavelmente só não se transformou em um movimento nacional por causa da pandemia de Covid-19” como disse Marcos Nobre.
Com efeito, ao lado da pandemia, a popularidade de Bolsonaro está em queda, Olavo cada vez mais isolado e o inquérito das Fake News está desarticulando o gabinete do ódio e as milícias bolsonaristas (como a recente prisão de Sarah Winter), motivo pelo qual os militares parecem mais à vontade para tutelar o presidente. Assim como Bolsonaro fora obrigado a voltar atrás quanto a divulgação dos dados da COVID-19 para dirimir o desgaste do ministro interino da Saúde, o general Eduardo Pazuello, o ministro Paulo Guedes já mudou de ideia e admitiu colaborar com o aporte de dinheiro público para as obras de infraestrutura do programa Pró-Brasil planejado pelo general Braga Netto (teria sido esse um dos motivos para a saída de Mansueto da secretaria do Tesouro?).
Muito se falou da entrevista do general Ramos, chefe da Secretaria de Governo, em que afirmou em tom de ameaça que “o outro lado tem que entender também o seguinte: não estica a corda”. Chamo atenção para o detalhe de que o “outro lado” não é necessariamente a oposição, mas o Judiciário na figura do TSE — justamente quem julgará a impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão. Mesmo sem querer, o próprio general convalidou a hipótese do impeachment pelo Congresso — em que apenas Bolsonaro é afastado — quando retrucou: “Se o Congresso, que historicamente já fez dois impeachments, da Dilma e do Collor, não cogita essa possibilidade, é o TSE que vai julgar a chapa irregular?”
Jair Bolsonaro, que não é bobo, está a par dos novos ânimos dos militares. Além de diminuir o tom contra os antifas para não inflamar as manifestações, o presidente está a objetar o impeachment através do fortalecimento do Centrão — abrindo mão da fé de que os militares lhe defenderão custe o que custar. Para tanto, rompeu duas promessas de campanha (fim do toma lá dá cá e redução do número de ministérios) para recriar o ministério da Comunicação e fornecê-lo a um deputado do Centrão, Fábio Faria (PSD-RN).
O andamento do impeachment ainda envolve a costura da Frente Ampla pelos partidos de oposição, em torno da qual o ex-presidente Lula, o presidente do PSDB Bruno Araújo e o senador Cid Gomes do PDT já deram declarações contrárias.
Para entender a posição desses líderes, é interessante notar que a anuência ao Congresso cresceu ao mesmo tempo que caiu a aprovação ao presidente e às Forças Armadas. Segundo o Datafolha, 45% dos brasileiros avaliavam os parlamentares como péssimos no final de 2019, ao contrário da pesquisa recém-divulgada em que o número baixou para 32%. A conduta do presidente está resgatando a reputação dos deputados perdida desde a Lava Jato, já que perto dele, afinal, é fácil parecer razoável. Por isso não estranha que os líderes da oposição considerem melhor um Bolsonaro sangrando do que um Bolsonaro morto.
A entrevista de Bruno Araújo (PSDB), um dos artificies do impeachment de Dilma, deixa claro que os tucanos aprenderam a lição — também em 2016 teria sido melhor uma Dilma sagrando do que morta. Ali, o erro foi ter assumido um país ingovernável sob efeitos da Lava Jato e crise econômica, e o preço pago foram os míseros 5% de Geraldo Alckimin na eleição passada. Desta vez, no entanto, o medo é inverso: caso assumam através do impeachment, os militares podem ajeitar a casa, recuperar a confiança e garantir o passaporte para mais quatro anos, assim como ocorreu com o governo que entrou em cena com o impeachment de Collor.
A tese do sucesso do governo militar se apoia em dois argumentos:
1- Quando a pandemia passar, é provável que ingressemos numa forte recuperação da atividade econômica. Como explica o ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa, “é normal registrar rápida recuperação do PIB após ‘paradas súbitas’, pois o simples fato de a atividade econômica parar e voltar ao normal gera grande flutuação das estatísticas anuais”. Mesmo que não recuperemos os -6,5% de contração previstos para este ano, é esperado que avancemos cerca de 3,5% em 2021, maior percentual dos últimos 10 anos e que cairia bem no colo dos militares.
2- O impeachment pode acirrar a polarização entre esquerda e extrema direita, ao mesmo passo que aumentaria o desejo de ordem e estabilidade numa outra parcela da população. Os militares arrumariam a casa, se venderiam como uma classe técnica competente e os extremos petista e bolsonarista, ao contrário, seriam criticados como igualmente ruins, alimentando uma espécie de “polarização contra os polarizadores” que promoveria os militares.
Se, antes, a oposição temia falar em impeachment por causa da sinergia entre os militares e Bolsonaro, agora a diferença entre ambos — expressa no sucesso de um futuro governo militar — é que atrapalha a formação da Frente Ampla. Muito se diz das semelhanças entre as milícias bolsonaristas e as chavistas, mas o medo é que nos tornemos uma Venezuela em que os generais não tiram o pé do poder.